Para este texto, entramos em
contato com o cinéfilo Houldine Nascimento, que nos apresentou sua perspectiva
do evento Cine PE 2012.
A importância do Cine PE
Por Houldine Nascimento
Inicialmente chamado
"Festival de Cinema do Recife", a trajetória do Cine PE - Festival do Audiovisual começou em 1997. O evento é
organizado pelo casal de economistas Sandra e Alfredo Bertini e pode-se dizer
que é o maior acontecimento cinematográfico do Brasil no primeiro semestre.
Este ano, o Cine PE esteve em sua 16ª edição. Desde o início, obras importantes
como "Baile Perfumado", "Bicho de Sete Cabeças" e "O
Invasor" tiveram o festival pernambucano como ponto de partida. Mais de
800 filmes, divididos em longa e curta metragens, passaram por aqui. Em uma
década e meia, 350 mil espectadores acompanharam os filmes que estrearam no Cine PE. Não à toa, se trata do festival
de cinema mais popular do país.
Nesta edição, três grandes nomes
do cinema nacional foram homenageados: o ator Ney Latorraca, que esteve
presente em fitas notáveis, casos de "O Beijo no Asfalto", de Bruno
Barreto, e "Ópera do Malandro", de Ruy Guerra; e os cineastas Cacá
Diegues (um dos pais do Cinema Novo) e Fernando Meirelles, que é o nosso
realizador mais bem sucedido internacionalmente.
À propósito, o Cine PE de 2012 serviu para lembrar os
10 anos do lançamento de "Cidade de Deus". Além de se tornar um
clássico do cinema latino-americano, o filme de Meirelles foi um verdadeiro
"estouro" no mundo. Causou grande impacto em Cannes e recebeu quatro
nomeações no Oscar, abrindo as portas para Fernando dirigir produções
estrangeiras ("O Jardineiro Fiel" e "O Ensaio sobre a
Cegueira").
De Breno Silveira, "À Beira
do Caminho" foi o grande vencedor de 2012. O longa recebeu seis prêmios,
incluindo melhor filme, roteiro (Patrícia Andrade) e ator – para João Miguel.
"Paraísos Artificiais", de Marcos Prado, ganhou prêmios técnicos. Na
seleção de filmes, nota-se que não há preconceitos. Vê-se um "convívio
harmonioso" entre obras menos comerciais, como o já citado "À Beira do
Caminho", e fitas voltadas a grandes plateias, caso de
"Paraísos...". Talvez seja esse o grande segredo do Cine PE: agradar (ou tentar agradar)
tanto a crítica especializada quanto o público.
Não é fácil comandar um festival
de cinema durante tanto tempo, ainda mais no Brasil. Surgido em 2008, o
“Festival de Paulínia” é um exemplo. Logo no ano de estreia, trouxe produções
fortes para exibição. A cidade paulista inclusive tinha participação no capital
das obras que competiam por lá. No entanto, a prefeitura decidiu suspender a
premiação deste ano.
Felizmente, o Cine PE conseguiu resistir em todos
esses anos. E fica o desejo de que dure por muito tempo.
Segundo crítico Pedro Bucci, a crise dos cinemas de rua iniciou em meados
dos anos 80. Além do surgimento dos shopping’s e multiplex, a produção
cinematográfica aumenta, consideravelmente, em todo o mundo, contribuindo para
a crise. “Fica difícil sustentar um cinema na rua desse modo, principalmente
quando um multiplex coloca algum filme de arte entre os seus blockbusters e
acaba atraindo parte do público da rua”, afirma Bucci. Hoje, percebemos que os
cinemas de rua do Recife estão ganhando mais força e atraindo um público maior.
Dentre as principais salas de cinema na cidade estão: o Cinema São Luiz; o
Cinema da Fundação Joaquim Nabuco; e o Cinema Apolo.
Cinema São Luiz
Inaugurado no
dia 6 de setembro de 1952 e situado a margem do Rio Capibaribe, na cabeceira da
ponte mais moderna da época, a ponte Duarte Coelho, o Cinema São Luiz se
destacou dentre os cinemas de rua do Recife, prezando pela arte na sua
concepção artística, com exibição em cine-teatro.
O local onde se
encontra hoje, foi, originalmente uma Igreja dos Ingleses, construído em 1838,
numa das extremidades da Rua Formosa, atual Avenida Conde da Boa Vista. O edifício
Duarte Coelho, que abriga o cinema, conta com 13 pavimentos, dos quais os 4
primeiros são ocupados pelo São Luiz e por uma série de estabelecimentos
comerciais, sendo os demais andares destinados ao uso residencial. O cinema
contava com poltronas de madeira, revestidas de estofado vermelho, chegando a
comportar 1.340 assentos. O cinema representou na época a importante fase de
inovações urbanas da cidade, sendo considerado o mais requintado cinema de rua
do Recife.
Após 55 anos de
funcionamento, em 2007, o cinema fechou suas portas. Nesse mesmo ano, as
Faculdades Integradas Barros Melo (AESO) deram início a uma reforma cujo
objetivo foi transformar o Cinema São Luiz num centro cultural. A reforma que
duraria 1 ano, foi interrompida em março de 2008, quando a AESO informou a
desistência do empreendimento. No mesmo ano, o prédio foi tombado pelo Governo
do Estado que, por meio da Fundarpe, trouxe de volta o tradicional cinema de
rua, revitalizado e sem vícios na mídia cinematográfica.
O novo São Luiz
é prioritariamente um espaço de exibição da produção audiovisual nacional e
pernambucana, a preços populares e sessões com horários sensíveis às demandas
do grande público. A curadoria da casa prevê também abrangência na programação,
que inclui filmes que marcaram a história, clássicos do cinema internacional e
nacional e uma programação fixa voltada para o público infantil.
Vídeo sobre reinauguração do Cinema São
Luiz
Cinema da Fundação Joaquim Nabuco
Durante os anos 80, o espaço dividia espaço entre o teatro (o prédio
abrigou o curso de formação de atores, na época), a música e o cinema. A Sala
José Carlos Cavalcanti Borges, no Derby, é a casa do Cinema da Fundação Joaquim
Nabuco, ou apenas, o Cinema da Fundação, como é normalmente chamado. Mesmo sem
ter uma programação diária de filmes, a sala sempre apresentou uma rica oferta
durante os anos.
De 1989 a 1990,
o Cinema da Fundação abrigou o Cineclube Jurando Vingar, liderado, entre
outros, pelo hoje cineastra Marcelo Gomes (Cinema Aspirina e Urubus). Na JCCB
também foram vistos centenas de vídeos e filmes regionais e nacionais e dezenas
de mostras de cinema do mundo todo. Anizio Andrade era o diretor desse trabalho
na época, tendo como superintendente, do então Instituto de Cultura, Silvana
Meirelles, a mesma que hoje é responsável pela Diretoria de Memória, Educação,
Cultura e Arte da Fundaj. Foram eles que, já na segunda metade da década de 90,
mesmo trabalhando com equipamentos deficitários de projeção de cinema 35mm,
partiram para renovar o JCCB a partir de um projeto do Ministério da Cultura.
Essa verba trouxe o que na época representava o mais moderno sistema de
projeção e som para cinema do norte-nordeste via projetor americano de marca
Stong e som Dolby SR, inéditos no Recife, até então.
Em 1998, Silvana
Meirelles convida o crítico e cineasta Kleber Mendonça Filho para criar uma
política de exibição formadora de público numa cidade cuja cultura é rica, mas
pobre em espaços de cinema não comercial. O novo perfil da programação
valorizaria a cinefilia num formato diário, levando para sala um tipo de cinema
que, de outra maneira, não chegaria ao Recife. Deixar o Cinema da Fundação em
sintonia com os cinemas de perfil semelhante ao redor do mundo, incentivando o
prazer da descoberta do cinema eram outros ideais. Esse novo perfil de cinema
estreou na noite de 23 de maio de 1998 (28 pagantes) com a exibição do filme Bent, de Sean Mathias.
Depois de um primeiro ano de pequenas conquistas, o
novo espaço, que atraía aos poucos, não só um público, mas também parceiros diversos.
A sala José Carlos Cavalcanti Borges assumia então a sua atual identidade:
Cinema da Fundação. Ainda em dezembro de 1998 que aconteceu a primeira versão
do que seria mais tarde a mostra Retrospectiva/ Expectativa, na época chamada
apenas de Retrospectiva, apresentando apenas 14 filmes. Foi em 2011 que o
cinema da fundação bateu o seu recorde de público, atraindo mais de 62 mil
espectadores ao longo de uma intensa programação, que teve 10 mostras de
filmes.
Reportagem sobre o Cinema da Fundaj
Cine-Teatro Apolo
Inaugurado em 1842, o Cine-teatro Apolo é mais antigo teatro da cidade do
Recife. Sua construção foi iniciada em 1839 pela Sociedade Harmônico Theatral.
Reaberto ao
público desde novembro de 2002, o Cinema Apolo prioriza filmes de
cinematografias diversas. De 2002 até agora, foram vistos mais de 100 filmes
estrangeiros de 20 países e várias mostras temáticas, registrando um público
superior a 30 mil pessoas. No Apolo de segunda a quarta tem 2 sessões de
filmes,por 2 reais. Lá tem um mural com
as peças e apresentações, muitos folders e panfletos indicando outras atrações.
Fale com Ela, de Pedro Almodóvar, exibido
em 2004, foi o recordista atraindo um público de 2.114 espectadores. Uma
Verdade Inconveniente, de Davis Guggenheim, teve um público total de mais
de 2 mil pessoas durante as nove semanas que ficou em cartaz, em 2007, com uma
média de 50 pessoas por dia (esse filme foi o recordista de público do Apolo
para um documentário).
O cinema abriga
também o Panorama Recife de Documentários, que exibe produções audiovisuais
divididas em curtas, médias e longas em película e vídeo. Cópias de Lolita,
Corações e Mentes, Música e Fantasia fazem parte do Projeto
Cinema Falado. Além disso, o Apolo apresenta a Retomada do Cinema Pernambucano
– 10 anos, em que participam filmes locais. As mostras especiais Cinema
Francófono, Cinema Português, Mostra de Cinema Sueco, Novo Cinema Espanhol, Na
Trilha dos Samurais e Mostra de Cinema de Israel, ocuparam e sedimentaram seu
espaço.
Daniel Medeiros, Ellen Reis, Renata Santos e Stamberg Júnior
Quando as primeiras salas de cinema começaram a aparecer, no início do século
XX, a palavra de ordem era modernizar. Para se adequar à situação que o Recife
se encontrava, era necessário um cenário atraente com os novos espaços
públicos dentro dos padrões civilizados, simbolizando as transformações que a
metrópole passava. Com uma arquitetura expressiva, volumes puros e letreiros
luminosos, as novas salas de cinema transpiravam modernidade e progresso.
O cronista Nicolau Sevcenko relatou, na época, que além da velocidade das
transformações do cenário urbano e dos hábitos cotidianos se assemelharem à
cinematografia, ele tinha a sensação, com o empilhamento de imagens, que as
cidades se transformavam em verdadeiros álbuns de projeções. O cinema é
responsável por influenciar e alterar, drasticamente, a sensibilidade e os
estados de disposição dos cidadãos recifenses.
As primeiras exibições de filmes aconteceram nos mais diversos lugares:
teatros, festas de largo (praça), circos, velódromo, cafés e casas de diversão.
A primeira sala de exibição do Recife, chamada de Cosmorama, estava instalada
na Rua da Imperatriz, depois dessa, veio o Teatroscópio, na rua Dr. Rosa e
Silva, nº61, a Companhia de Arte e o Bioscope Inglês. Em 1909, foram
inaugurados os cinemas Pathé, na rua Barão de Vitória, nº45 (320 lugares), em
seguida veio o Cinema Carlos Gomes, depois o Cine Palace, no subúrbio da Várzea,
seguido do Cinema Royal na rua Nova e em 1910, o Cine-Teatro Helvética, na rua da Imperatriz.
Os cinemas Politeana, Moderno e Santa Isabel, mais conhecido como o cinema mais
luxuoso do Norte, vieram depois.
A partir dos anos 20, o mercado de distribuição cresce e as salas de
cinema se multiplicam. A imprensa local incentiva os pioneiros dessa arte em
Pernambuco, aparecendo nos jornais colunas que comentavam os filmes e a vida
dos artistas. Um exemplo desse fato foi a revista Klaxon, que sempre fazia
referência ao cinema em suas publicações, tanto quando comentava as fitas em
cartaz, como quando expressavam o universo das sensações e ilusões que se
distribuía nas salas de exibição. No estado, existiam vários periódicos, de
grande tiragem, que se dedicavam ao cinema: o Écran, a Revista Cinematográfica
e Social, e a Revista Cinema, que tinha grande circulação e era distribuída nas
salas.
A capital pernambucana tem uma participação relevante na historiografia
do cinema brasileiro. Souza Barros afirma que “dos ciclos regionais que
marcaram a evolução do cinema brasileiro antigo, silencioso, o ciclo do Recife
foi talvez o mais importante e se estendeu durante toda a década de vinte”. O
marco decisivo, no Recife, aconteceu em 1923, quando foi fundada a
Aurora-Filme, por Edson Chagas e Gentil Roiz.
Na década de 20, o Recife ficou conhecido como a “Hollywood do Brasil”. O
cinema ganha uma importância muito maior, atraindo produções da Europa e de
Hollywood viessem até aqui, mas não tirando o prestígio dos filmes locais que,
ainda assim, fazem sucesso nas salas de exibição do estado.
Abaixo seguem alguns vídeos que mostram um
pouco a história dos cinemas de rua:
Este primeiro é um trailler de um
documentário que fala dessa história
A oposição ao governo de Costa e Silva, segundo presidente na linhagem militar brasileira após o golpe, aumentou expressivamente em 1968. Na medida em que as ações opositoras aconteciam, intensificava-se também a repressão policial. Em março, o estudante Edson Luís de Lima Souto foi morto durante manifestações estudantis no Rio de Janeiro – fato que desaguou numa onda de protestos, censurada com violência. A Passeata dos Cem Mil, em junho, afirmava “O povo organizado derruba a ditadura”. Em julho, atentados contra teatros e atores de esquerda. Em outubro, quase mil participantes do congresso clandestino organizado pela União Nacional dos Estudantes (UNE), em Ibiúna (SP), foram presos. Operários fizeram greves em Contagem (MG) e Osasco (SP), consideradas ilegais e, portanto, reprimidas. Enquanto as agitações quase depuseram Charles de Gaulle na França e Lyndon Johnson desistiu da reeleição nos Estados Unidos, no Brasil as consequências foram bem distintas. A resposta oficial veio no dia 13 de dezembro: o Ato Institucional nº 5 (AI-5), aprovado numa reunião do Conselho de Segurança Nacional (com apenas um voto contra). Decretava o fim das liberdades civis e de expressão. Um desfecho autoritário para um ano em que o Brasil, assim como o mundo, desejava autonomia.
Com o AI-5, redações dos principais veículos de comunicação foram “invadidas” por funcionários da Divisão de Censura de Diversões Públicas da Polícia Federal, que passaram a controlar o conteúdo a ser publicado. Teatros foram destruídos, artistas sequestrados e interrogados, compositores e escritores exilados.
A sensação de relativa liberdade de expressão, logo após o golpe de 64, “permitiu” no cenário cultural atuações que oscilavam entre o experimentalismo e o engajamento, a participação e a alienação. Foram inclusive esses antagonismos que provocaram, por exemplo, confrontos entre artistas nacionalistas de esquerda e vanguardistas do Tropicalismo – isto é, além dos militares, existia um tipo de “patrulha ideológica” por parte da esquerda nacionalista. Em 1967, a “passeata contra a guitarra elétrica” legitimou-se como manifestação ideológica contra a Jovem Guarda. Enquanto isso, os “tropicais” eram contra o autoritarismo e a desigualdade social, mas comungavam com a ideia de internacionalização da cultura e com a busca de uma nova expressão estética, irrestrita ao discurso político.
Geraldo Vandré, cantor e compositor, era um dos artistas que iam de encontro a esse pensamento, por não valorizar a arte que não se comprometia com mudanças políticas e sociais. Num debate ocorrido na Faculdade de Filosofia de Natal, posicionou-se contra o universalismo de Gil e Caetano, porque era criado “um estado de espírito que nós realmente não sentimos”. Vandré, inclusive, era um dos primeiros artistas que a ditadura procurava depois do AI-5. Ele havia participado do III Festival Internacional da Canção com “Pra não dizer que não falei das flores”, canção que se tornou hino contra o regime militar. O compositor foi acolhido pela viúva do escritor Guimarães Rosa, na fazenda da família no sertão mineiro, até o momento de seguir para o auto-exílio.
“Há soldados armados / amados ou não / quase todos perdidos / de armas na mão / nos quartéis lhes ensinam / uma antiga lição / de morrer pela pátria / e viver sem razão.” Pra não dizer que não falei das flores, Geraldo Vandré.
No dia 27 de dezembro foi a vez de Caetano Veloso e Gilberto Gil serem presos. O estopim para a ação foi a última edição do programa Divino, maravilhoso que foi ao ar antes do Natal. Nela, Caetano cantou “Noite feliz” com uma arma apontada para a cabeça. O programa, marcado pela irreverência – apresentando por Gal Costa, Gil e Caetano –, foi exibido durante apenas dois meses pela extinta TV Tupi. Era dirigido por Fernando Faro e Antonio Abujamra, apresentou nomes de cantores debutantes como Jards Macalé e Jorge Ben. As fitas do programa foram destruídas pelos diretores, restando apenas registros fotográficos e na memória de quem fez e assistiu. Divino, maravilhoso era a resposta tropicalista aos programas da TV Excelsior O Fino da Bossa (com Elis Regina e Jair Rodrigues) e Jovem Guarda (com Roberto Carlos, Eramos Carlos e Wanderléia).
Em pé: Jorge Ben, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Rita Lee e Gal Costa. Abaixados: Sérgio Dias e Arnaldo Baptista. No dia da estreia do programa Divino, maravilhoso (28/10/68).
O programa era marcado por atuações irreverentes que não agradavam nem um pouco aos militares.
De volta à prisão de Gil e Caetano, durante dois meses fizeram um tour por vários quartéis, até que, após o Carnaval de 1969, passaram a viver sob o regime de “confinamento” em Salvador – tendo de se apresentar diariamente ao chefe da Polícia Militar. Em seguida, foram “convidados” a deixar o país e iniciaram o auto-exílio em Londres.
Movimentos e consequências à parte, no cenário da época, a participação nordestina e, em especial, a pernambucana foi muito enriquecedora, ainda que seu estudo seja menos tradicional diante das demais ações culturais que permearam o Brasil de 1968 em diante.
Quando Gil veio lançar seu primeiro LP, Louvação (1967), em Recife, acabou passando uma temporada de um mês no teatro Hermilo Borba Filho, apresentando-se junto a Geraldo Azevedo e, os que viriam a ser integrantes do Quinteto Violado, Marcelo Melo e Luciano Pimentel. Conviveu com pessoas como Jomard Muniz de Britto, Aristides Guimarães (cantor e compositor à frente da banda Laboratórios de Sons Estranhos, LSE) e outros artistas e intelectuais locais que o mostraram as músicas da região: pastoril profano, maracatu, ciranda, banda de pífano. A junção de todo esse aparato regional à produção individual de Gil, pode ser já notada no segundo LP, Gilberto Gil, do ano seguinte.
Capa do LP homônimo de Gilberto Gil, 1968.
Acontece que essa convivência não foi por acaso. Eram pessoas daqui que movimentavam a ideia tropicalista no Nordeste. Afinal, em Recife, João Pessoa e Natal, embora poucos admitam – nem mesmo Caetano registrou em seu livro Verdade tropical –, existiu um movimento tropicalista quase que simultâneo ao mais propagado. Em julho de 68, foi lançado o Inventário do Feudalismo Cultural Nordestino, terceiro manifesto tropicalista nordestino, “mais contundente e de maior amplitude” (TELES, 2000). Assinaram o documento: de Pernambuco, Jomard Muniz de Britto, Aristide Guimarães e Celso Marconi; da Paraíba, Marcus Vinicius (pernambucano radicado lá), Carlos Aranha e Raul Córdula; do Rio Grande do Norte, Dailor Varela, Alexis Gurgel, Falves da Silva, Anchieta Fernandes e Moacyr Cirne; e, representando a Bahia, Caetano Veloso e Gilberto Gil.
Ocorreu no mesmo ano a II Feira de Música Popular do Nordeste, fundamental, inclusive, para a música pernambucana, palco de vários debates que discutiam os rumos da cultura. Conseguiu aglutinar os artistas que trabalhavam separadamente e, sobretudo, passou-se a compor mais. Inclusive pela ausência de registros, mais parece uma geração muito mais engajada do que produtora – só aparência. De todo modo, foi essa tradição de feiras e encontros que na geração seguinte, do início dos anos 70, conseguiu ainda mais fortificar as produções locais. A exemplo da I Feira Experimental de Música do Nordeste, realizada no dia 11 de novembro de 1972, no teatro de Nova Jerusalém, na qual os produtores, sem nenhuma intenção de faturar em cima do projeto, realizaram uma feira livre com entrada franca a fim de unir tudo e qualquer coisa que chegasse para subir aos palcos.
Dessa vez, sem manifestos, a geração do desbunde pernambucano deixou um vasto legado que convivia em sintonia com a psicodelia pós-Woodstock e a geração beatnik - chegando a ser nomeada beat-psicodelia recifense. Dos tropicalistas, herdaram a necessidade de estarem antenados com o exterior, valorizando os ritmos locais. Música nordestina com linguagem rock'n'roll.
Hey Man, faixa do LP homônimo dos ex-Tamarineira Village, Ave Sangria (1972).
Produções da época. No sentido anti-horário: Satwa (1973) e Marconi Notaro no Sub Reino dos Metazoários (1973), Paêbirú - Caminho da Montanha do Sol (1975) e Flaviola e o Bando do Sol (1976).
Eram shows no Beco do Barato, no pátio de São Pedro, no Geraldão, Olinda, Fazenda Nova, no teatro Santa Isabel. O chamado udigrudi recifense, que tinha como guru Lula Côrtes e nomes como Marconi Notaro, Zé Ramalho, Tamarineira Village (depois Ave Sangria), O Phetus, Robertinho do Recife, Flaviola. O perfil dos artistas, as atuações, o som, o alto nível de experimentalismo e psicodelia mistificaram os personagens que faziam parte dessa cena. O desagrado por serem tachados como contracultura, refletido na falta de patrocínio, obrigava a emigração dos músicos para a gravação de um LP. Até porque tínhamos aqui a gravadora Rozemblit (que na época já não era tão bem sucedida), mas que, ligada ao tradicional, nunca percebeu que Pernambuco sempre teve vocação para vanguarda e que rock dava dinheiro. Só mais adiante, já no final desse processo musical, foi que Lula Côrtes e Zé Ramalho gravaram o LP Paêbirú - Caminho da Montanha do Sol (1976) utilizando o estúdio da Rozemblit, bancados pela produtora Abrakadabra.
Esse cenário duvidoso, incentivado pela falta de investimentos, resultou na dispersão dos artistas. Foi uma fase de extrema riqueza experimental que acabou por desembocar num Recife "sem criatividade", por mais de uma década, quando se vê o nascimento do Manguebeat.
Trilha de Sumé, do LP Paêbirú (1975) de Lula Côrtes e Zé Ramalho.
TELES, José. Do frevo ao manguebeat. São Paulo: Ed. 34, 2000.
Este ano,
o Nordeste comemora o centenário de uma das figuras mais representativas da
região: Luiz Gonzaga. O rei do baião, um
dos títulos que recebeu ao longo de sua carreira, continua a ser muito exaltado
mesmo depois de 23 anos de sua morte. Não é para menos. A contribuição cultural
de Gonzagão define, até hoje, a imagem do homem nordestino e da própria região
em si. Dentre os vários estilos musicais e expressões culturais que existem no Nordeste, a música de Gonzaga conseguiu difundir um conjunto de elementos imagéticos
que, de certa forma, sintetizam a ideia de “nordestinidade”.
O sucesso
do grande ícone da música regional, nascido em Exu, sertão de Pernambuco, veio
nas décadas de 1940 e 1950 através do rádio, principal meio de comunicação de
massa da época. Foi por intermédio das grandes emissoras radiofônicas do
sudeste que Gonzaga, vestido com uma indumentária típica que reunia a roupa do
vaqueiro nordestino com o chapéu usado pelos cangaceiros, criou a “música
nordestina”, abordando em suas canções o migrante nordestino e a sua constante
saudade da terra natal. Dono de uma nítida visão comercial de sua carreira,
Gonzaga obteve grande êxito na indústria de entretenimento nacional e
conseguiu, com sua música, criar um imaginário comum que unificou as diversas manifestações
da região sob uma mesma identidade cultural.
Sua música
e imagem, porém, acabaram endossando a ideia de um Nordeste tradicional e atrasado
em detrimento do “sul” moderno e industrial.
É importante resgatar que foi através da crise da economia açucareira
que começa a ser elaborado um discurso nordestino unitário, baseado no
saudosismo que busca relembrar as glórias do passado em contraposição à ameaça
“sulista” modernizadora. Além disso, outro aspecto importante na construção da
ideia de Nordeste como região é a questão das secas que assolam a área. O
ideário do Nordeste foi construído como
produto imagético-discursivo relacionado às secas, colocadas como o problema
mais importante da região.
Os clichês que colaboraram para a construção da imagem do Nordeste foram
perpetrados também pelos próprios habitantes da região, como podemos perceber
nas obras dos romancistas da década de 30. Em post
anterior sobre o movimento armorial, Gabriella Autran fala que o sertanejo era representado por esses escritores como sofredor passivo
da seca, construindo significado através de
referências ao ambiente hostil do sertão, onde o homem sofre com as mazelas da
seca. O movimento regionalista elegeu o sertenejo, caracterizado como rude e embrutecido
pela natureza, capaz de enfrentar todo tipo de dificuldade e de sobreviver a
elas, como a figura antagônica ao Brasil moderno, cafeeiro e industrial que
nascia no Sul. Esse seria o homem capaz de recuperar a potência e o poderio
deste saudoso lugar.
Aliás, a saudade é temática constante do cancioneiro. Albuquerque Júnior,
em “A invenção do Nordeste e
outras artes”, defende que “suas músicas operam com a dicotomia entre o espaço
do sertão e o das cidades. O sertão é o lugar de pureza, do verdadeiramente
brasileiro, onde os meninos ainda brincam de roda, os homens soltam balões,
onde ainda existem as festas tradicionais de São João”. É como um lugar
místico, preso ao tempo cíclico da natureza, “é um espaço que, embora informado
das transformações históricas e sociais ocorrendo no país, recusa estas
mudanças” (Albuquerque Júnior, 2001).
As canções tem uma construção narrativa onde as ações humanas são
fortemente marcadas por sua relação com a natureza. Como explica Felipe Trotta
(2009), “a temporalidade rural opõe-se à velocidade das cidades, onde pessoas,
automóveis, notícias e emoções circulam apressadamente por seus espaços físicos
apertados e onde é proibido perder tempo ‘olhando pro céu’“. Um exemplo da
expressão musical dessa saudade é o início da música ‘No meu pé de serra’ (Luiz
Gonzaga/ Humberto Teixeira), lançada em 1946:
“Lá no meu
pé de serra
Deixei ficar meu coração
Ai que saudades tenho
Eu vou voltar pro meu sertão”
O som da sanfona, zambumba e triângulo, tríade sempre presente na obra de
Luiz Gonzaga, estabelece uma relação indissociável com o ambiente sociocultural
do sertão, com seu tradicionalismo arraigado, que leva a uma ideia de
imutabilidade e traz a imagem de Nordeste não passível de progresso e
desenvolvimento.
A verdade é que Gonzaga foi o primeiro artista a tentar traduzir em sua
música a percepção do Nordeste como unidade, um espaço que faz oposição ao sul.
Ele foi o primeiro representante de uma “voz do Nordeste”, que se preocupou em
tornar os problemas da região conhecidos pelo governo, além de tentar despertar
o interesse pelas tradições do local. Nesse processo, outros discursos sobre a região
foram silenciados por não usufruírem dos mesmos recursos midiáticos que tinha o
de Gonzagão. Recursos esses que foram são
frutos, justamente, dessa pretensão de uma produção cultural que atendesse a
todos os migrantes nordestinos que habitavam as grandes cidades. Para os empresários
do ramo “havia uma lacuna a ser preenchida no empreendimento popular das emissoras:
o grande contingente de público que migrava do Nordeste para trabalhar na
capital” (Vieira, 2000).
Um trecho do
artigo “Música popular, valor e identidade no forró eletrônico do Nordeste do
Brasil”, de Felipe Trotta (2009), resume o fenômeno Luiz Gonzaga:
“Em meados do século
passado, as narrativas do sertão cantadas no repertório gonzagueano, quase todo composto em parceria
com Zé Dantas ou Humberto Teixeira, ecoavam
de forma altamente expressiva na memória de milhares de migrantes, que compartilhavam os significados, as paisagens
e as imagens. Colaboravam, assim, para a
consolidação de uma imagem de Nordeste, estreitamente vinculada à idéia
de sertão e apontando inexoravelmente
para o passado, para a memória e para a saudade. O baião será a “música do Nordeste”, por ser a primeira que
fala e canta em nome desta região. Usando o
rádio como meio e os migrantes nordestinos como público, a identificação
do baião com o Nordeste é toda uma
estratégia de conquista de mercado e, ao mesmo tempo, é fruto desta sensibilidade regional que havia emergido nas
décadas anteriores”.
Quando foi 68? : Os anseios sociais
em um mundo conturbado
Por Antônio Júlio
Rebelo Neto e Simony César
O
mundo durante o pós-guerra era marcado por incertezas. Havia a corrida
armamentista entre as potências mundiais EUA e URSS, o colapso econômico nos
países do chamado “Eixo”, Alemanha, Japão e Itália, as cidades europeias
destruídas, culturas territoriais alteradas, entre tantos outros eventos
obscuros.
Tudo
“coroado” por uma guerra de ocupação. Onde os combates militares formais apenas
se deram no início e final do conflito, predominando neste intervalo a opressão
dos invasores, com os civis constituindo-se em uma grande massa de oprimidos
fisicamente e mentalmente. Estimam-se em 40 milhões de mortos civis.
De
fato, as pessoas buscavam modelos a seguir, que levassem a uma condição de vida
mais digna e mais humana. Tratados foram criados entre as nações, ligas foram
formadas, países unidos em busca de paz.
Assim,
as guerras legitimaram o objetivo de se alcançar um Estado liberal, que
almejasse a justiça e a democracia.
Realizou-se
em 1954 a Conferência de Genebra, que objetivava restaurar a paz na Indochina e
Coreia, após a derrota francesa no Vietnã. Vale ressaltar que a França recebia
apoio financeiro e militar estadunidense, enquanto soviéticos e chineses
apoiavam os vietnamitas. Assim, temporariamente o Vietnã seria dividido em
norte (socialista) e sul (anticomunista) até a próxima eleição que seria em
1956.
Contudo,
os Estados Unidos não assinaram o acordo de Genebra, invadindo posteriormente o
Vietnã do Sul, impondo um golpe de estado ao governo de Bao Dai, colocando em
seu lugar, Ngo Dinh Diem, comprometido com os norte-americanos.
Diem
implantou uma ditadura militar, proclamou a independência do Vietnã do Sul e
cancelou as eleições previstas pelo Acordo de Genebra, porque havia a convicção
de que ela daria a vitória a Ho Chi Minh, chefe da nação vietnamita do norte.
Isto
demonstrava o nível ético ao qual os Estados Unidos estava disposto a adotar
para conseguir vencer a Guerra Fria contra a URSS e, consequentemente, contra o
comunismo, sistema abominado na América do Norte, mas que ganhava força popular
em países nacionalistas que lutavam por sua independência.
O
conflito no Vietnã foi catastrófico. Mais ainda para os norte americanos, que
viram sua imagem ruir perante o mundo civilizado e pelos próprios cidadãos
estadunidenses. Pois, o conflito foi amplamente divulgado pela mídia, onde
imagens de horrores eram transmitidas pela televisão o que causava repulsa na
população. Além do fato de que com a guerra, eis que surge uma forma de combate
que mais tarde se espalharia pela América: a guerrilha.
Enquanto
o mundo assistia espantado a derrocada norte-americana, na França há
manifestações populares crescentes. Manifestos estudantis, reinvindicações do
proletariado e insurgências civis marcam a sociedade francesa na década de 60.
A
maioria dos insurretos eram adeptos de ideias esquerdistas, comunistas ou
anarquistas. Lutavam para verem mudar os valores pertencentes a uma antiga e
decadente burguesia, cujo resgate de força se deu pelo governo de De Gaulle.
O
operariado na França fazia greves, contestava seus patrões e exigia melhores
condições de trabalho. Armavam “barricadas”, enfrentavam a polícia, cuja força
o governo utilizava nas chamadas “blitz”.
Os
intelectuais de esquerda lançavam livros e manifestos, conduziam seus discursos
sobre a revolução. Conhecida como a revolução dentro da revolução, uma
observação para que houvesse mudanças de comportamento entre os insatisfeitos
do atual governo. Era preciso lutar. Assim, Régis Debray, Cohn-Bendit, Alan
Geismar e Jacques Sauvageot se tornavam emblemáticos na contestação do
capitalismo a todo custo e a exploração dos trabalhadores.
Era
conhecida como a “Nova Esquerda” e pregava novas atitudes. Eles se diferenciavam
dos movimentos esquerdistas anteriores, e adotaram uma definição de ativismo
político mais ampla, comumente chamada de ativismo social. Temas como
sexualidade, gênero, liberdade, raça e igualdade ganharam destaque para estes
ativistas, não importando apenas o aspecto político-econômico nacional.
Nos
países latino-americanos, também ocorriam mudanças. Em Cuba caía Fulgencio
Batista, ante a guerrilha revolucionária de Fidel Castro. Este por sua vez implantava
no país um governo socialista, que nacionalizou fazendas privadas, propriedades
religiosas e propriedades estrangeiras. Na Venezuela, os “direitistas” traíram
os guerrilheiros, ampliando o embate entre os pobres e os ricos. Na Bolívia,
rangers treinados por instrutores norte-americanos lutaram contra os
revolucionários de Che Guevara, culminando em sua morte. No Chile, Eduardo Frei
Montalva, de orientação política cristã de direita, ganhava as eleições contra
Salvador Allende, que era socialista, utilizando intervenção publicitária da
CIA. Na antiga Tchecoslováquia o socialismo também sofria duras quedas, pela
dissolução dentro do Partido Comunista, aliás, dissoluções estas amplamente
espalhadas pelo mundo.
Esta
quebra dentro do PC se dava muitas vezes por divergências ideológicas dos seus
intelectuais fundadores. Uns de tendência mais pacifista, a exemplo do Chile de
Allende, outros mais combatentes como a URSS, Cuba e China. O que dificultava a
unidade global em torno do ideal marxista e leninista.
Agindo
assim, os comunistas enfraqueceram-se em seus países, dando lugar aos
capitalistas liberais, que com a ajuda do grande capital propagandista
arrebatavam cada vez mais simpatizantes ao seu sistema.
Aqueles
anos entre 1960 e 1970 era um prenúncio do que o mundo se tornaria o que é nos
dias atuais. Os partidos políticos cada vez mais desamparados em ideologias, as
pessoas mais informadas e independentes do Estado e o incessante caminhar
humano em busca de reformas sociais (decadência econômica das antigas potências
capitalistas, consciência ecológica, queda de ditaduras, etc.), que tragam mais
satisfação coletiva.
Por Clarissa Viana,
Kamilla Rogge e
Márlon Diego Oliveira.
Discentes do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco.
Em seu livro Sobre Ética e
Psicanálise, a psicanalista Maria Rita Kehl aborda as questões éticas que
permeiam a psicanálise nos tempos atuais: o pensar sobre si e sobre a relação
com o Outro na chamada “cultura do individualismo”, e como essa reflexão é
afetada pelos códigos que tem ditado o comportamento da sociedade ao longo dos
anos.
Maria Rita Kehl
Maria Rita utiliza a psicanálise como base indispensável para explicar o
comportamento do homem moderno e a sociedade do consumo, e discorre sobre a
ética necessária para se meditar a respeito dos valores que contradizem
filosofias que ditam a forma de se conviver em sociedade há milhares de anos
através de discursos transmitidos de geração em geração, como por exemplo, as formações
da cultura de origem mítica – mitologia, religião e tradição.
Mas como podemos discutir a ética de valores que não são declarados
facilmente, como a violência, o prazer narcisista, o acúmulo de dinheiro, a
exclusão do outro?
A ética trata da questão da convivência, e ao levarmos isso em
consideração, o individualismo exacerbado da sociedade atual seria considerado
antiético. Segundo alguns estudos expostos por Freud e Lacan, por exemplo, o
primeiro sentimento despertado pela entrada de um indivíduo semelhante em nossa
vida é o ódio, pelo fato de ele ser semelhante
na diferença.
“Por ser ao mesmo tempo tão
semelhante e tão diferente, o “próximo” vem sempre nos deslocar de nossa
‘identidade’ (uma ilusão narcisista), pois traz inevitavelmente a questão: se
eu sou este e ele se assemelha tanto a mim, mas não é eu, quem é ele? Diante
dele, quem sou eu?”. (KEHL, 2002, p.20)
A convivência com o outro aparece nos dias de hoje, não como solução, mas
como um problema. A ética do homem moderno não se orienta na direção do
convívio com o outro, pois na verdade ela tornou-se uma ética da não convivência.
Podemos notar que nos tempos modernos os questionamentos sobre o que é
certo e o que é errado deixaram de ser ditados por autoridades míticas e
passaram a ser um questionamento pessoal. Mas o legado de liberdade trouxe
também o desamparo. O sujeito moderno agora é um sujeito dividido entre ter de
gozar e ter de conviver.
Portanto, o fato de não declarar alguns valores apesar de senti-los põe o
indivíduo em desacordo com seus próprios desejos. Ele tem de ser juiz de si e
também levar em conta a existência do outro. O fato de ter de governar a si
próprio pode causar ao sujeito moderno a sensação de desamparo e descontrole. A
psicanálise então surge como um norte, pois o ser humano sente a necessidade de
que sua vida faça algum sentido. E não passa de uma grande ilusão achar que a
criação de sentido para a vida é um ato individual.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
KEHL, Maria Rita. Sobre ética e psicanálise. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002.
segunda-feira, 6 de agosto de 2012
Comunicação, linguagem, moda e suas
particularidades
Por:
Márlon Diego de Oliveira
Kamilla Rogge
Clarissa Viana de Andrade
Quando refletimos sobre a
comunicação, em primeira instância, somos induzidos a limitá-la ao âmbito da
linguagem falada e da linguagem escrita. Contudo, a comunicação não se
restringe a essas esferas. Logo, ela transcende as formas de interação verbal e
está presente nos mais diversos setores da vida social.
Ao realizar uma análise sobre a interligação
existente entre a comunicação, a linguagem e a moda, percebe-se que esta também
utiliza a comunicação não verbal a fim de que se possa compreender em
totalidade a sua aplicação, isto é, a moda, através da indumentária, também
pode ser considerada uma forma de linguagem, pois transmite precisas
informações acerca dos indivíduos inseridos em um contexto social. Dessa forma, a moda e a vestimenta são usadas
com o intuito de atribuir sentido ao mundo, as coisas e às pessoas que o
integram, fato que, segundo Barnard, as estabelece como fenômeno comunicativo e
dá forma a um sistema estruturado de significado.
O uso de vestimentas é fundamental
por três razões: proteção (a fim de proteger-se de agressões do meio), pudor
(bastante ligado a questões religiosas) e adorno (motivo mais instigante pelo
qual podemos fazer uma pesquisa a respeito dessa temática, visto que há uma
enorme complexidade na efetuação do simples ato de se vestir). Ainda no que
concerne ao uso de vestimentas como adorno, alguns fatos merecem ser
ressaltados: ao vestir o corpo, o indivíduo produz significação e, as roupas
utilizadas também são uma forma de se comunicar; quando há o processo de
ornamentação do corpo, além de haver um ato comunicacional, também há a
representação de valores sociais, já que o corpo “ganha existência” por meio de
uma fabricação social.
Antes de iniciar qualquer tipo de
conversação, as pessoas já se comunicam, ou seja, através do vestuário, as
pessoas podem transmitir às outras informações como: estado de humor, classe
social, ideologia política, desejos sexuais, entre outros. Por isso, é
necessário considerar que o “idioma” das roupas está em constante mutação e,
além disso, as novas ideias e fenômenos sociais necessitam de novas palavras e
novos estilos para expressá-los.
Então, se existe um “idioma” para as
roupas, é fundamental a existência de um “vocabulário” e uma “gramática” capaz
de interpretá-lo. Assim como a língua falada, a linguagem da roupa possui uma
enorme diversidade cultural e geográfica, a partir dos mais variados dialetos e
sotaques, e também dos tons imprimidos pelos indivíduos em seu discurso.
Independentemente da forma ou tipo de
linguagem, a moda sempre terá ao seu dispor um sistema de organização peculiar,
uma codificação semelhante ao alfabeto para a realização da troca de mensagens.
Por sua vez, este “idioma” não se forma apenas com roupas. Acessórios como
estilo de cabelo, piercings, tatuagens, maquiagem e decoração também estão
imersos nessa forma de significação. Após a elaboração da linguagem da moda, as
peças inclusas neste adquirem uma significação própria em um conjunto de
pessoas, e dão forma ao discurso da indumentária.
A partir da formação desse idioma, a
transmissão de mensagens se dá a partir de uma peça de roupa, acessórios,
adereços, entre outros, escolhidos de modo que traga uma sensação de
compartilhamento de ideologias, estado de ânimo, etc., por parte de quem as
emite e, estas pessoas somente serão “bem-sucedidas” nesta missão caso o
receptor consiga compreender o conteúdo inerente a estas. Portanto, apenas
neste caso o processo comunicativo obterá êxito.
Quando se examina a relação existente
entre linguagem e comunicação, infere-se que a moda incorpora de significado à
sociedade contemporânea e, com isso, produz uma ligação entre
sujeito-imagem-moda, que tem o consumo como meio de ligação entre ambos.
Portanto, o consumo passou a ser um modo de identificação para o sujeito
absorto em um mundo repleto de imagens e envolvido pela moda. Desse modo,
quando optamos pela compra ou utilização de uma roupa, estamos tentando nos
descrever e nos definir, por isso, escolhemos as peças com a intenção de
mostrar quem somos ou tentamos ser no determinado instante.
Portanto, com o objetivo de assimilar
o constante desejo de compreensão mútua proveniente dos indivíduos em uma
sociedade, é de suma importância apreender a estreita relação entre
comunicação, linguagem e moda nos dias atuais.
O ano
de 1968, no Brasil, foi marcado pelo endurecimento da ditadura no país. Sob o
poder militar representado então pelo marechal Costa e Silva, a sociedade civil
brasileira padecia ante os disparates governamentais. Entre eles, o AI-5 (Ato
Institucional Número Cinco) garantia ao presidente da República Federativa do
Brasil poderes tamanhos tal qual o fechamento do Congresso Nacional, marcando
de vez o endurecimento do regime. De fato, o AI-5 institucionalizava a
repressão e tortura aos oposicionistas do governo militar.
Assim,
os partidos tidos como de “esquerda” eram os principais alvos dos militares.
Isso porque os militantes esquerdistas eram quem combatiam o atual do governo.Com isso, surgiam grupos organizados,
alinhados com a ideologia comunista, e que almejavam o fim da ditadura. Logo,
estes grupos ganharam força frente à sociedade civil, o proletariado, artistas
e os estudantes, todos, nesta época, ansiosos por mudanças no quadro político
nacional.
Neste contexto, a militância de esquerda
ganhava força nos grêmios estudantis, buscando na juventude a formação de
futuros combatentes. Os grêmios funcionavam como locais de reunião entre membros
partidários da oposição, como PC do B, PCB e PCBR, juntos, obviamente, dos
estudantes. Além dos partidos comunistas, havia ainda as organizações de cunho
revolucionário, muitas vezes originados por dissidentes partidários de
esquerda, como por exemplo, a Aliança Nacional Libertadora (ALN), a Vanguarda
Popular Revolucionária (VPR), o Movimento Comunista Revolucionário (MCR), a Vanguarda
Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), entre outros. Algumas destas
organizações de extrema esquerda possuíam a vantagem de contar entre os seus
membros com antigos soldados do regime, que deserdaram do Exército Brasileiro
para ir lutar ao lado dos comunistas.
Eram
utilizadas diversas formas de combate, desde práticas violentas como assaltos a
bancos, sequestros e atentados, até ações propagandistas como pichações,
panfletagem e veiculação de jornais. Em consequência da constante vigilância
ditatorial, as ações contrárias ao governo aconteciam de forma esporádica. Mais
ainda, a divulgação de ideias oposicionistas através dos meios impressos,
constantemente, se reduzia a jornais, cuja circulação predominava entre os
membros dos partidos esquerdistas.
Isto
porque, no Brasil da ditadura, o medo era um fator permanente na vida das
pessoas. Gente desaparecia no calar da noite, o silêncio rondava as ruas, e a
desconfiança marcava as relações sociais. Havia os infiltrados do governo, os
delatores do sistema, que obrigavam os indivíduos a medirem sempre suas
palavras. O controle social era caracterizado pela censura, havendo censores
nos teatros, na literatura e, obviamente, nos jornais. Versos musicais eram
excluídos ou adulterados, a mesma coisa para as falas de personagens em peças
teatrais. Matérias eram lidas antes de serem publicadas, havendo corte caso
assim desejasse os censores.
No
entanto, muitos jornais continuaram a publicar notícias que informassem ao seu
público a conjectura geral da Nação. A maioria deles eram jornais comunistas,
mimeografados, muitas vezes produzidos em pequenos cômodos, de modo a se
refugiar da perseguição dos ditadores. Alguns eram bem conhecidos, como
Opinião, O Pasquim e Movimento. Contribuíram assim para o boom do jornalismo alternativo da chamada imprensa nanica e/ou
combativa as pressões pelos censores dentro das redações, os jornais a serviço
do governo, e a condição a que eram submetidos os jornalistas, que ficavam
“atados”. Assim, estes jornais em tamanho de tabloides (variação do termo
“imprensa nanica”) podiam ser basicamente de dois tipos: alguns
predominantemente políticos e de outro lado, jornalistas cansados do discurso
ideológico. Em geral pedagógicos e dogmáticos, o primeiro tipo tinha raízes nos
ideais de valorização do nacional e do popular dos anos 50, ou no marxismo
vulgarizado nos meios estudantis nos anos 60. O segundo tipo se inspirava nos
movimentos de contracultura norte-americana, no orientalismo, anarquismo,
existencialismo, era contra o autoritarismo e a moral da burguesia e aderia às
drogas.
Poderia se classificar o período de circulação
dos principais jornais alternativos em quatro fases. A primeira foi quando o
objetivo era revolucionar o país. Conseguinte, surgiu a fase da resistência ao
poder, onde reformularam a linguagem e as críticas, quando aumentou sua
perseguição por parte da censura. No final dos anos 70, com a abertura
política, as redações dos jornais alternativos foram deixando a clandestinidade
e ganhando o espaço público. Na fase final os jornais se voltavam aos
movimentos populares de base.
Evidentemente,
a imprensa alternativa obteve papel importante quanto à circulação de
informações e ideias de natureza diversificadas, além de combater os desmandos
de um governo autoritário. Como disse Kucinski, “a imprensa alternativa dos
anos 70 era tudo isso ao mesmo tempo. Em contraste com a complacência da grande
imprensa para com a ditadura militar, os jornais alternativos faziam a crítica
sistemática do modelo econômico. Inclusive nos anos de seu aparente sucesso,
durante o milagre econômico - de 1968
a 1973 -, destoando assim do discurso triunfalista do
governo ecoado pela grande imprensa, construindo dessa forma todo um discurso
alternativo”. (1998, p. 179)
Referência
bibliográfica
KUCINSKI, Bernardo. A
síndrome da antena parabólica. SãoPaulo: Fundação Perceu Abramo, 1998.