quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Luiz Gonzaga e a construção da imagem do povo nordestino


                                                                                                                         Igor Nóbrega

Este ano, o Nordeste comemora o centenário de uma das figuras mais representativas da região: Luiz Gonzaga.  O rei do baião, um dos títulos que recebeu ao longo de sua carreira, continua a ser muito exaltado mesmo depois de 23 anos de sua morte. Não é para menos. A contribuição cultural de Gonzagão define, até hoje, a imagem do homem nordestino e da própria região em si. Dentre os vários estilos musicais e expressões culturais que existem no Nordeste, a música de Gonzaga conseguiu difundir um conjunto de elementos imagéticos que, de certa forma, sintetizam a ideia de “nordestinidade”.

O sucesso do grande ícone da música regional, nascido em Exu, sertão de Pernambuco, veio nas décadas de 1940 e 1950 através do rádio, principal meio de comunicação de massa da época. Foi por intermédio das grandes emissoras radiofônicas do sudeste que Gonzaga, vestido com uma indumentária típica que reunia a roupa do vaqueiro nordestino com o chapéu usado pelos cangaceiros, criou a “música nordestina”, abordando em suas canções o migrante nordestino e a sua constante saudade da terra natal. Dono de uma nítida visão comercial de sua carreira, Gonzaga obteve grande êxito na indústria de entretenimento nacional e conseguiu, com sua música, criar um imaginário comum que unificou as diversas manifestações da região sob uma mesma identidade cultural.

Sua música e imagem, porém, acabaram endossando a ideia de um Nordeste tradicional e atrasado em detrimento do “sul” moderno e industrial.  É importante resgatar que foi através da crise da economia açucareira que começa a ser elaborado um discurso nordestino unitário, baseado no saudosismo que busca relembrar as glórias do passado em contraposição à ameaça “sulista” modernizadora. Além disso, outro aspecto importante na construção da ideia de Nordeste como região é a questão das secas que assolam a área. O ideário do Nordeste foi construído como produto imagético-discursivo relacionado às secas, colocadas como o problema mais importante da região.

Os clichês que colaboraram para a construção da imagem do Nordeste foram perpetrados também pelos próprios habitantes da região, como podemos perceber nas obras dos romancistas da década de 30. Em post anterior sobre o movimento armorial, Gabriella Autran fala que o sertanejo era representado por esses escritores como sofredor passivo da seca, construindo significado através de referências ao ambiente hostil do sertão, onde o homem sofre com as mazelas da seca. O movimento regionalista elegeu o sertenejo, caracterizado como rude e embrutecido pela natureza, capaz de enfrentar todo tipo de dificuldade e de sobreviver a elas, como a figura antagônica ao Brasil moderno, cafeeiro e industrial que nascia no Sul. Esse seria o homem capaz de recuperar a potência e o poderio deste saudoso lugar.

Aliás, a saudade é temática constante do cancioneiro. Albuquerque Júnior, em “A invenção do Nordeste e outras artes”, defende que “suas músicas operam com a dicotomia entre o espaço do sertão e o das cidades. O sertão é o lugar de pureza, do verdadeiramente brasileiro, onde os meninos ainda brincam de roda, os homens soltam balões, onde ainda existem as festas tradicionais de São João”. É como um lugar místico, preso ao tempo cíclico da natureza, “é um espaço que, embora informado das transformações históricas e sociais ocorrendo no país, recusa estas mudanças” (Albuquerque Júnior, 2001).

As canções tem uma construção narrativa onde as ações humanas são fortemente marcadas por sua relação com a natureza. Como explica Felipe Trotta (2009), “a temporalidade rural opõe-se à velocidade das cidades, onde pessoas, automóveis, notícias e emoções circulam apressadamente por seus espaços físicos apertados e onde é proibido perder tempo ‘olhando pro céu’“. Um exemplo da expressão musical dessa saudade é o início da música ‘No meu pé de serra’ (Luiz Gonzaga/ Humberto Teixeira), lançada em 1946:

“Lá no meu pé de serra
Deixei ficar meu coração
Ai que saudades tenho
Eu vou voltar pro meu sertão”


O som da sanfona, zambumba e triângulo, tríade sempre presente na obra de Luiz Gonzaga, estabelece uma relação indissociável com o ambiente sociocultural do sertão, com seu tradicionalismo arraigado, que leva a uma ideia de imutabilidade e traz a imagem de Nordeste não passível de progresso e desenvolvimento.

A verdade é que Gonzaga foi o primeiro artista a tentar traduzir em sua música a percepção do Nordeste como unidade, um espaço que faz oposição ao sul. Ele foi o primeiro representante de uma “voz do Nordeste”, que se preocupou em tornar os problemas da região conhecidos pelo governo, além de tentar despertar o interesse pelas tradições do local. Nesse processo, outros discursos sobre a região foram silenciados por não usufruírem dos mesmos recursos midiáticos que tinha o de Gonzagão.  Recursos esses que foram são frutos, justamente, dessa pretensão de uma produção cultural que atendesse a todos os migrantes nordestinos que habitavam as grandes cidades. Para os empresários do ramo “havia uma lacuna a ser preenchida no empreendimento popular das emissoras: o grande contingente de público que migrava do Nordeste para trabalhar na capital” (Vieira, 2000).

Um trecho do artigo “Música popular, valor e identidade no forró eletrônico do Nordeste do Brasil”, de Felipe Trotta (2009), resume o fenômeno Luiz Gonzaga:
“Em meados do século passado, as narrativas do sertão cantadas no repertório  gonzagueano, quase todo composto em parceria com Zé Dantas ou Humberto Teixeira,  ecoavam de forma altamente expressiva na memória de milhares de migrantes, que  compartilhavam os significados, as paisagens e as imagens. Colaboravam, assim, para a  consolidação de uma imagem de Nordeste, estreitamente vinculada à idéia de sertão e  apontando inexoravelmente para o passado, para a memória e para a saudade. O baião será a  “música do Nordeste”, por ser a primeira que fala e canta em nome desta região. Usando o  rádio como meio e os migrantes nordestinos como público, a identificação do baião com o  Nordeste é toda uma estratégia de conquista de mercado e, ao mesmo tempo, é fruto desta  sensibilidade regional que havia emergido nas décadas anteriores”. 

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