Igor Nóbrega
Este ano,
o Nordeste comemora o centenário de uma das figuras mais representativas da
região: Luiz Gonzaga. O rei do baião, um
dos títulos que recebeu ao longo de sua carreira, continua a ser muito exaltado
mesmo depois de 23 anos de sua morte. Não é para menos. A contribuição cultural
de Gonzagão define, até hoje, a imagem do homem nordestino e da própria região
em si. Dentre os vários estilos musicais e expressões culturais que existem no Nordeste, a música de Gonzaga conseguiu difundir um conjunto de elementos imagéticos
que, de certa forma, sintetizam a ideia de “nordestinidade”.
O sucesso
do grande ícone da música regional, nascido em Exu, sertão de Pernambuco, veio
nas décadas de 1940 e 1950 através do rádio, principal meio de comunicação de
massa da época. Foi por intermédio das grandes emissoras radiofônicas do
sudeste que Gonzaga, vestido com uma indumentária típica que reunia a roupa do
vaqueiro nordestino com o chapéu usado pelos cangaceiros, criou a “música
nordestina”, abordando em suas canções o migrante nordestino e a sua constante
saudade da terra natal. Dono de uma nítida visão comercial de sua carreira,
Gonzaga obteve grande êxito na indústria de entretenimento nacional e
conseguiu, com sua música, criar um imaginário comum que unificou as diversas manifestações
da região sob uma mesma identidade cultural.
Sua música
e imagem, porém, acabaram endossando a ideia de um Nordeste tradicional e atrasado
em detrimento do “sul” moderno e industrial.
É importante resgatar que foi através da crise da economia açucareira
que começa a ser elaborado um discurso nordestino unitário, baseado no
saudosismo que busca relembrar as glórias do passado em contraposição à ameaça
“sulista” modernizadora. Além disso, outro aspecto importante na construção da
ideia de Nordeste como região é a questão das secas que assolam a área. O
ideário do Nordeste foi construído como
produto imagético-discursivo relacionado às secas, colocadas como o problema
mais importante da região.
Os clichês que colaboraram para a construção da imagem do Nordeste foram
perpetrados também pelos próprios habitantes da região, como podemos perceber
nas obras dos romancistas da década de 30. Em post
anterior sobre o movimento armorial, Gabriella Autran fala que o sertanejo era representado por esses escritores como sofredor passivo
da seca, construindo significado através de
referências ao ambiente hostil do sertão, onde o homem sofre com as mazelas da
seca. O movimento regionalista elegeu o sertenejo, caracterizado como rude e embrutecido
pela natureza, capaz de enfrentar todo tipo de dificuldade e de sobreviver a
elas, como a figura antagônica ao Brasil moderno, cafeeiro e industrial que
nascia no Sul. Esse seria o homem capaz de recuperar a potência e o poderio
deste saudoso lugar.
Aliás, a saudade é temática constante do cancioneiro. Albuquerque Júnior,
em “A invenção do Nordeste e
outras artes”, defende que “suas músicas operam com a dicotomia entre o espaço
do sertão e o das cidades. O sertão é o lugar de pureza, do verdadeiramente
brasileiro, onde os meninos ainda brincam de roda, os homens soltam balões,
onde ainda existem as festas tradicionais de São João”. É como um lugar
místico, preso ao tempo cíclico da natureza, “é um espaço que, embora informado
das transformações históricas e sociais ocorrendo no país, recusa estas
mudanças” (Albuquerque Júnior, 2001).
As canções tem uma construção narrativa onde as ações humanas são
fortemente marcadas por sua relação com a natureza. Como explica Felipe Trotta
(2009), “a temporalidade rural opõe-se à velocidade das cidades, onde pessoas,
automóveis, notícias e emoções circulam apressadamente por seus espaços físicos
apertados e onde é proibido perder tempo ‘olhando pro céu’“. Um exemplo da
expressão musical dessa saudade é o início da música ‘No meu pé de serra’ (Luiz
Gonzaga/ Humberto Teixeira), lançada em 1946:
“Lá no meu
pé de serra
Deixei ficar meu coração
Ai que saudades tenho
Eu vou voltar pro meu sertão”
Deixei ficar meu coração
Ai que saudades tenho
Eu vou voltar pro meu sertão”
O som da sanfona, zambumba e triângulo, tríade sempre presente na obra de
Luiz Gonzaga, estabelece uma relação indissociável com o ambiente sociocultural
do sertão, com seu tradicionalismo arraigado, que leva a uma ideia de
imutabilidade e traz a imagem de Nordeste não passível de progresso e
desenvolvimento.
A verdade é que Gonzaga foi o primeiro artista a tentar traduzir em sua
música a percepção do Nordeste como unidade, um espaço que faz oposição ao sul.
Ele foi o primeiro representante de uma “voz do Nordeste”, que se preocupou em
tornar os problemas da região conhecidos pelo governo, além de tentar despertar
o interesse pelas tradições do local. Nesse processo, outros discursos sobre a região
foram silenciados por não usufruírem dos mesmos recursos midiáticos que tinha o
de Gonzagão. Recursos esses que foram são
frutos, justamente, dessa pretensão de uma produção cultural que atendesse a
todos os migrantes nordestinos que habitavam as grandes cidades. Para os empresários
do ramo “havia uma lacuna a ser preenchida no empreendimento popular das emissoras:
o grande contingente de público que migrava do Nordeste para trabalhar na
capital” (Vieira, 2000).
Um trecho do
artigo “Música popular, valor e identidade no forró eletrônico do Nordeste do
Brasil”, de Felipe Trotta (2009), resume o fenômeno Luiz Gonzaga:
“Em meados do século
passado, as narrativas do sertão cantadas no repertório gonzagueano, quase todo composto em parceria
com Zé Dantas ou Humberto Teixeira, ecoavam
de forma altamente expressiva na memória de milhares de migrantes, que compartilhavam os significados, as paisagens
e as imagens. Colaboravam, assim, para a
consolidação de uma imagem de Nordeste, estreitamente vinculada à idéia
de sertão e apontando inexoravelmente
para o passado, para a memória e para a saudade. O baião será a “música do Nordeste”, por ser a primeira que
fala e canta em nome desta região. Usando o
rádio como meio e os migrantes nordestinos como público, a identificação
do baião com o Nordeste é toda uma
estratégia de conquista de mercado e, ao mesmo tempo, é fruto desta sensibilidade regional que havia emergido nas
décadas anteriores”.
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