por Mário Augusto Rolim
MÚSICA:
O ano de 1968 é tido, por merecimento,
como o ápice dos movimentos de contracultura que se espalharam por várias
partes do mundo entre o final da década de 1960 e o começo da década de 1970.
Um bom meio de evidenciar isso é lembrar o número de músicas pop que, se não
defendiam a revolta, pelo menos demonstravam uma percepção de que alguma coisa
diferente estava acontecendo naqueles anos finais da década. Mesmo bandas e
artistas que eram – e continuaram depois – apolíticas escreveram pelo menos
alguma música relacionada à situação sociopolítica daquele tempo. Sim, os anos
de maior engajamento dos jovens em movimentos contraculturais ou de protesto
coincidiram com os anos de maior tendência ao protesto na música pop, mas,
mesmo nessa época, protestar explicitamente através de músicas não era comum. Na
verdade, esse tipo de comportamento é comum nas artes comerciais em geral,
desde a música até a literatura e o cinema. Tal tipo de músicas era mais comum
em artistas relacionados ao movimento de revitalização da folk music americana e artistas como Joan Baez, Bob Dylan (entre os
anos de 1963 e 1965), Pete Seeger e Peter, Paul And Mary.
Posso começar com o Cream, um
supergrupo de rock que em suas letras seguia as tradições do blues com uma influência de rock
psicodélico, e preferia fazer covers de clássicos do blues a abordar temas sociais em suas músicas. Mas em 68 eles
escreveram e lançaram, no álbum Wheels of
Fire, uma canção chamada ‘Politician’, descrita na crítica do álbum na
Allmusic como “um blues lento,
cínico”. A letra critica o lado hipócrita e falso dos políticos, com um
eu-lírico que “apóia a esquerda apesar de estar se inclinando para a direita”,
que “não está lá quando há uma briga”, se declarando “um homem político que
pratica o que prega” e que chama uma pessoa desconhecida (provavelmente uma
mulher) para dentro do seu “grande carro preto” para “mostrar suas políticas”.
A banda californiana The Doors seguia
caminho parecido ao Cream em termos de letras e de propensão a fazer covers de clássicos do blues, mas em 68
eles largaram sua postura passiva por um momento e lançaram no álbum Waiting For The Sun a canção ‘The
Unknown Soldier’. Nela, Jim Morrison – vocalista e principal compositor da
banda – aborda o modo como a mídia tratava a Guerra do Vietnã escrevendo “Café
da manhã onde as notícias são lidas/Televisão alimentou as
crianças/Não-nascidos vivendo, mortos-vivos/Bala atinge a cabeça com o
capacete”, e também escreve “Faça uma cova para o soldado desconhecido/Aninhado
na tumba de seu ombro”, terminando a música com uma encenação do fim da guerra.
Ao tocar essa canção, a banda também costumava simular de um pelotão de
fuzilamento, através de uma combinação de sons da bateria e guitarra e Morrison
caindo no palco, como que fuzilado pela guitarra.
Outra banda de rock que seguia uma
vertente semelhante às duas anteriores na composição de suas músicas eram os
Rolling Stones. Em 68, Mick Jagger compôs ‘Street Fighting Man’ para o álbum Beggars Banquet. A inspiração para escrevê-la após ir a uma
manifestação anti-guerra em frente à embaixada americana em Londres naquele
ano, na qual policiais investiram contra uma multidão de aproximadamente vinte
e cinco mil jovens. Na letra, Jagger toma partido dos
protestantes/”revolucionários” e retrata muito bem o ambiente daquele momento,
dizendo que “Em todo o lugar eu escuto o som de pés marchando/Porque o verão
chegou e a hora é certa para lutar nas ruas” e que “Acho que o momento é certo
para uma revolução palaciana”, apesar de lamentar que “Mas o que um pobre
garoto pode fazer/A não ser cantar em uma banda de rock ‘n roll/Porque na
sonolenta cidade de Londres não há lugar para um lutador de rua”. Os Stones
pretendiam lançá-la como single, com uma
foto de policiais batendo em manifestantes de Los Angeles, mas a distribuidora
rapidamente proibiu sua circulação. O single foi também banido em várias rádios
americanas, que alegavam que ele era “subversivo” e podia “incitar violência”.
Jagger respondeu dizendo que “É claro que é subversivo! É estúpido pensar que
se pode começar uma revolução com um disco. Quem dera se pudesse!”.
Seguindo a linha de bandas de rock que
tinham letras (e canções) influenciadas primariamente por blues e rock
psicodélico, temos a Jimi Hendrix Experience. Para seu álbum de 1968, Electric Ladyland, Hendrix compôs ‘House
Burning Down’ (segundo ele porque não entendia o porquê de irmãos – no sentido
mais amplo do termo – queimarem as casas uns dos outros) uma referência aos
protestos anti-racismo do verão de 68, em que várias casas e estabelecimentos
foram incinerados. Também tem conotação sociopolítica a canção ‘1983... A
Merman I Should Turn To Be’, apesar dela estar um pouco escondida por trás de
metáforas e uma das letras mais poéticas de toda a carreira de Hendrix. Nela, o
eu-lírico fala sobre querer renascer sob a forma de um sereio junto com seu
amor, fugindo da guerra e seu “barulho mortal”. Ele também lamenta que “nossos
amigos não podem estar conosco hoje”, numa referência aos assassinatos de
Martin Luther King Jr. e Robert Kennedy, separados por apenas dois meses.
Hendrix também faz alusão ao bombardeio – através de mísseis, bombas e napalm –
ao Vietnã feito pelos Estados Unidos, com “Coisas gigantes com formato de lápis
e batom/Continuam a chover e causar dor gritante”. O título é uma referência à
seção 1983 – que fala de ação civil à deprivação de direitos - do Civil Rights
Act de 1871, feito para proteger - legalmente - os negros de ataques racistas,
o que extinguiu a Klu Klux Klan por décadas.
Pode-se terminar mencionando justamente
os Beatles, a maior banda de rock da história, que em seu Álbum Branco de 1968
uma música chamada ‘Revolution 1’
e outra chamada ‘Revolution 9’.
Os Beatles até então só tinham abordado temas sociopolíticos em suas músicas (a
maior parte estava bem longe disso) em ‘Taxman’, uma crítica irônica aos
impostos pagos pelos britânicos naquela época. ‘Revolution 1’ é uma canção sobre as
revoluções (ou tentativas de revolução) que ocorreram no mundo no primeiro
semestre de 1968, principalmente. Em vez de enaltecer tais revoluções – como
poderia ter acontecido, já que os Beatles eram contra a Guerra do Vietnã e
estavam entre os principais expoentes da cultura hippie na música -, a letra de
John Lennon questiona o planejamento e a abordagem dos revolucionários, ao
mesmo tempo em que mostra o caráter dúbio do seu compositor, que não sabe se
quer se juntar aos revolucionários ou não. Essa ‘crítica da crítica à
sociedade’ não era fácil de ser encontrada nos trabalhos artísticos de bandas anti-stablishment da época, já que os
hippies como um todo pareciam imbuídos de um estado de crescente otimismo de 1967 a 1970. John Lennon
chegou a ser criticado por radicais de esquerda, que alegaram que a canção era
uma traição ou uma demonstração burguesa de medo, e até perseguido por grupos
que seguiam ou eram favoráveis a Mao, Trotski e Lênin. Já ‘Revolution 9’ é completamente diferente da
sua “companheira”, e também completamente diferente de qualquer outra música
dos Beatles ou de qualquer banda de música pop da história, se constituindo de
uma colagem vanguardista de sons e efeitos sonoros dos mais variados, pontuados
por vocais que na maior parte das vezes são quase incompreensíveis, chegando a
cerca de oito minutos. Inicialmente, ‘Revolution 1’ e ‘Revolution 9’ seriam uma música só de
aproximadamente dez minutos, com a primeira dando lugar à segunda, mas Lennon
decidiu separá-las e fazer uma seção de colagens mais elaborada (e complexa) do
que originalmente previsto. A inclusão dela no álbum chocou não só o público, que
anos atrás podiam ver os Beatles vestidos de jovens comportados tocando músicas
até inocentes como ‘She Loves You’ e ‘I Wanna Hold Your Hand’, mas também os
próprios membros da banda e profissionais que trabalhavam com ela (Paul
McCartney era contra a inclusão dela, que acabou sendo a canção de estúdio de
maior duração dos Beatles, no álbum; George Harrison ajudou na edição e
contribuiu gravando algumas partes vocais). É praticamente impossível se tirar
uma mensagem da “letra” de ‘Revolution 9’, mas não estaria John Lennon fazendo também
uma excêntrica espécie de revolução com sua aventura pela música concreta?
Muitos críticos chegaram a afirmar que a inclusão de ‘Revolution 9’ no Álbum Branco era o fator
essencial que o tornava mais que um álbum de música pop. Um álbum-conceito,
alguns diriam, outros falariam de um suposto gênero musical chamado ‘art rock’.
Não importa. John Lennon pode não ter tido sucesso em sua revolução pessoal,
mas ninguém pode falar que ele não chocou o mundo, ou que ele não deixou uma
mensagem.
Essas duas canções são um bom exemplo
para diferençar os variados tipos de ações políticas de protesto ou de
demonstrações de consciência política que eram/são feitas através da arte, mais
precisamente a música, naquele momento da história. De um lado, as músicas de
crítica social explícita, ainda que essa crítica venha em forma de metáfora ou
outras figuras de linguagem. Como exemplo eu posso citar ‘Blowin’ In The Wind’
e ‘The Times They Are A-Changin’’, de Bob Dylan, ou ‘Pra Dizer Que Não Falei
das Flores’, de Geraldo Vandré. Em outra vertente eu colocaria os trabalhos
musicais que procuravam não fazer uma crítica sociopolítica explícita através
das letras, mas que acabavam por ter um impacto mesmo assim. Claro, sempre
houveram e haverão artistas que parecem ser até despretensiosos socialmente e
preferem se manter longe de qualquer discurso político, mas que conseguem
chocar mesmo assim. Esses sempre estiveram conscientes do seu papel no meio
artístico e da sua capacidade de crítica ao meio cultural e social em que
habitam, como Caetano Veloso, The Velvet Underground e Miles Davis.
Não vou longe o suficiente para dizer
que todo ato artístico é em si também um ato político, mas não se podem negar
certas coisas. A mera existência de uma banda como o Velvet Underground, por
exemplo, com seu som muitas vezes estranho e distorcido e suas letras falando
sobre consumo de drogas e perversão de diferentes tipos já é em si uma grande
afronta ao sistema político. Quanto à importância desses diferentes tipos de
discursos políticos, Caetano Veloso menciona em sua autobiografia ‘Verdade
Tropical’ que Geraldo Vandré chegou a procurar o empresário de Caetano e Gil
para pedir a eles que não entrassem no páreo (nas disputas por festivais ou
mesmo por espaço nas rádios e na mídia), alegando que “o Brasil necessitava
daquilo que ele, Vandré, estava fazendo (ou seja: canções “conscientizadoras
das massas”) e que, como o mercado não comportava mais de um nome forte de cada
vez, nós todos deveríamos, para o bem do país e do povo, jogar todas as cartas
nele”. Vandré já era o cantor de protesto por excelência no país e além de
auto-confiança e desejo de “conscientizar as massas”, também está por trás
desse pedido uma noção de que o tipo de música que ele fazia era mais importante
para o país do que a Tropicália. Também havia em Vandré uma cobrança para que
Caetano, Gil e tantos outros tornassem sua crítica política mais veemente. É
impossível determinar qual dessas duas vertentes efetivamente causa mais
impacto, mas o fato é que a Tropicália, com sua desenvoltura, maneira
performática e até escandalosa de se apresentar e mistura de diferentes gêneros
musicais com a própria poesia, até, chocou tanto adeptos da bossa nova quanto
do rock (a principal dicotomia musical da época). A prova de que a Tropicália
também era uma ameaça à ditadura veio quando Caetano Veloso e Gilberto Gil
foram presos após uma apresentação na TV em tempos de Natal na qual Caetano
cantava ‘Noite Feliz’ apontando uma arma para a própria cabeça (Caetano quase
pediu para ser preso, convenhamos). Na prisão, oficiais chegaram a dizer a
Caetano que achavam a música que eles estavam fazendo bem mais ultrajante e
perigosa (não nessas palavras) que músicas de protesto mais claras. Depois de
algum tempo, a cabeça de Caetano foi raspada na prisão. Nesses tempos, até ter
cabelo grande podia ser um ato político.
CINEMA:
Entre as formas
de arte (ou de pensamento e expressão) que entraram em ebulição nos anos 60,
mais precisamente no final da década, mais precisamente ainda em 1968, o cinema
foi certamente uma das mais afetadas pelo espírito da época e uma das que melhor souberam transmiti-lo. Mas não poderia ser diferente. Provavelmente é unânime que o cinema é a arte do século XX, e aquela que mais se
firmou como uma das mais populares e amadas do mundo e a que mais povoou
imaginário popular.
Num cenário em que até estudantes
que haviam cogitado coisa parecida se mobilizaram para enfrentar forças armadas
do governo, e bandas que nunca haviam sequer mencionado assuntos políticos em
suas músicas demonstraram atenção ou interesse ao cenário sociopolítico da
época, provavelmente o cinema não teve um impacto tão grande nas questões
políticas do fim da década de 60. Talvez tenha sido assim pela demora na
produção e distribuição de um filme ser bem maior que de um disco, por exemplo,
pela maior facilidade em censurar ou proibir a circulação de filmes, ou talvez
pela própria tradição do cinema de não dar tanta importância aos problemas
sociopolíticos de sua época. Mas analisar os filmes dos anos 60 assim é ver só
um dos lados da moeda. Isso porque o cinema tem uma política própria, na qual
as críticas (ainda que não estejam explícitas) estão mais voltadas para o
mercado e o modo como o cinema é tratado do que com o cenário social. No caso,
a “politique des auteurs” (política
dos autores), termo usado pela primeira vez por François Truffaut em 1954.
Essa política é um desenvolvimento
de um ensaio escrito por Alexandre Astruc em 1948, chamado ‘Nascimento de uma
nova vanguarda: a câmera-caneta’, no qual ele previa que o diretor/autor
escreverá como um escritor escreve com sua caneta. A teoria foi retomada na Cahiers Du Cinéma por críticos (e
futuramente cineastas) como André Bazin, Jean-Luc Godard, François Truffaut e
Eric Rohmer. Na Cahiers havia uma
defesa dessa nova forma de se analisar filmes na qual se via o diretor como
autor máximo da obra, o estabelecimento do cinema como uma verdadeira e
respeitável forma de arte através do desenvolvimento de uma estética própria,
dando mais bem mais importância e destaque aos diretores vistos como autores,
como Bresson, Renoir, Hitchcock, Welles, Kurosawa, Bergman, só para citar
alguns. Ao tomar o partido de filmes mais pessoais e artísticos, essa política
também rejeitava os filmes comerciais, pensados para fazer os estúdios lucrarem
enquanto agradavam o grande público. A política foi adaptada para o inglês como
“auteur theory” por Andrew Sarris, um
dos mais importantes críticos de cinema dos Estados Unidos, em 62. Obviamente,
essa política recebeu várias críticas, até mesmo de críticos respeitados como a
americana Pauline Kael, mas é inegável que esse novo modo de analisar filmes
influenciou profundamente tanto críticos e espectadores como diretores, e ainda
é importante para a história do cinema e assunto de calorosos debates sobre a
sétima arte.
O sucesso da política dos autores
foi efetivado e deu frutos com o sucesso da chamada Nouvelle Vague, vanguarda do cinema francês formada em grande parte
por críticos da Cahiers Du Cinéma
como Truffaut, Godard, Rohmer, Chabrol e Rivette, tendo se iniciado no fim da
década de 50 e atingindo seu potencial máximo na década de 60. Os filmes da Nouvelle Vague eram de baixo orçamento e
principalmente por causa disso tinham deficiências técnicas evidentes, mas eram
autorais e dotados de uma aura de juventude como nenhum filme de Hollywood, e
constantemente desafiavam os clichês de gêneros e os moldes seguros dos filmes
comerciais, em questões que iam desde estruturas narrativas até o emprego de
atores não-profissionais em papéis importantes. As influências fílmicas que
formaram a estética dos diretores da Nouvelle
Vague eram várias, indo desde os filmes noir
americanos até neorrealistas italianos e de diretores-autores do cinema francês
como Jean Renoir.
Menciono a Nouvelle Vague primeiro porque foi ela que, sem dúvida, mais
influenciou e impulsionou a criação das vanguardas do cinema que surgiriam na
década de 60. Ecos da Nouvelle Vague
foram ouvidos em várias partes do globo. Nos Estados Unidos, filmes como Bonnie & Clyde (1967) e Sem Destino (1969) evidenciavam o
nascimento da chamada Nova Hollywood, dotada de jovens diretores como Scorsese,
Coppola, de Palma, Friedkin, Peckinpah, Bogdanovich, Malick, Spielberg, Altman
e Ashby, entre outros. Esses cineastas lutavam contra a ideologia repressora,
antiquada, e voltada para o mercado dos grandes (e decadentes) estúdios
enquanto tentavam dominar o sistema de estúdios e assim conquistar mais
autonomia e melhor financiamento, produção e distribuição de seus filmes, muito
mais ousados e pessoais que os da Hollywood clássica.
Na antiga Tchecoslováquia, pouco tempo antes dela se tornar um caldeirão
com a Primavera de Praga, cineastas como Milos Forman, Jan Nemec, Jíri Menzel, Ján
Kadár e Vera Chytilová faziam filmes que desafiavam e criticavam os valores e
as condições sociopolíticas de sua sociedade, ainda que não explicitamente.
Muitos deles foram atacados ou proibidos pela censura governamental, e Forman e
Nemec tiveram que deixar o país.
Enfrentando situação semelhante (vivendo
sob um regime autoritário e desigual que costumava censurar filmes e outras
formas de arte) estavam os cineastas do Cinema Novo no Brasil, como Glauber
Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Joaquim Pereira de Andrade, sendo parte
fundamental do que foi chamado de Terceiro Cinema, ou seja, um cinema do
Terceiro Mundo. Ângela Prysthon abordou esse cinema no artigo ‘1968: Imagens de
Uma Utopia’, dizendo:
“De acordo com a idéia de transformação da sociedade
pela conscientização trazida à tona pelos ideais terceiro-mundistas, os
principais temas dos filmes do terceiro cinema vão ser a pobreza, a opressão
social, a violência urbana das metrópoles inchadas e miseráveis, a recuperação
da história dos povos colonizados e oprimidos e a constituição das nações. Os
praticantes do terceiro cinema recusam adotar um modelo único de estratégias
formais ou transformar-se em um “estilo”, embora isto não tenha significado que
eles estivessem alheios ao cinema mundial e à idéia de um modelo, se aberto, ao
menos em linhas gerais unificador.
Ou seja, além de buscar os temas nas esferas
marginalizadas da sociedade, estes cineastas demonstram laços estilísticos
estreitos com o neo-realismo italiano e a Nouvelle
Vague francesa. Tais influências vão ser sentidas em dois níveis
principais: o neo-realismo italiano serve como proposta similar de abordagem
formal que pode ser aproveitada por sua simplicidade, baixo custo e linguagem
direta; e a Nouvelle Vague enquanto
afirmação do “cinema de autor”, o que possibilita a consolidação das linguagens
individuais dos principais expoentes do movimento. A partir desses elementos,
emerge um conjunto de procedimentos mais ou menos comuns à maioria dos
diretores engajados na denúncia social.” (PRYSTHON, p. 16)
Certamente os diretores do Cinema
Novo eram, entre os de todas as vanguardas citadas, os mais engajados
socialmente, e o que mais chegaram perto de um fazer político convencional.
Também é digna de nota a chamada ‘Estética da Fome’ que permeava os filmes
dessa vanguarda, talvez o maior ponto de influência do neorrealismo italiano.
Os filmes do Cinema Novo, além de mostrar pessoas pobres, eram evidentemente
“pobres” também, sob vários aspectos. As imagens eram duras e até sujas, sem o
polimento visual e o glamour que aparece até na direção de fotografia dos
filmes de Hollywood; o som geralmente não era captado diretamente, o que era mais
barato, e as trilhas sonoras não tinham pompa ou requinte, geralmente sendo
constituídas de músicas típicas da região mostrada, ou de compositores
brasileiros como Villa-Lobos; até a montagem não parecia tão clara, organizada
e imperceptível como na estética hollywoodiana. Todos esses fatores podem ser
vistos como defeitos, mas o Cinema Novo parecia ostentá-los com orgulho, até, e
como uma maneira própria de demonstrar autonomia.
Uma parte considerável desses
cineastas, por uma variedade de motivos, não alcançou o sucesso almejado e teve
apenas uns poucos e bons anos, com pouquíssimos nomes se mantendo em bom nível e chegando a fazer filmes de
qualidade por décadas, como Malick, Scorsese, Forman, Rohmer, Truffaut, Godard, Altman e Spielberg. Numa década tão turbulenta, é até normal que tenham havido algumas
“baixas”. Mas o fato é que os cineastas dos anos 60, cada um à sua maneira,
faziam política filmando desde as condições precárias dos trabalhadores do
sertão nordestino até as viagens (tanto as “psicodélicas” quantos as por
estradas) de motoqueiros hippies. E o cinema nunca mais foi o mesmo depois
disso.
É impossível falar do cinema dos
anos 60 sem ao menos esboçar uma análise mais geral do contexto, separando tudo
por grupos distintos, mas também é impossível fazê-lo sem destacar alguns filmes
em particular, ainda que brevemente:
- Antes da Revolução (1964), de Bernardo
Bertolucci: ao contrário do que o título possa sugerir, essa obra de
Bertolucci (então com 22 anos) demonstra como poucas a frustração da juventude
em relação à sua própria incapacidade de alcançar seus sonhos – tanto
relacionados ao amor impossível quanto a revoluções socialistas -, por causa
das amarras da ideologia burguesa. A mesma geração que abraçaria e tentaria uma
revolução alguns anos depois.
- Terra em transe (1967), de Glauber Rocha:
o filme de Glauber Rocha se passa em um país latino-americano fictício chamado
El Dorado, claramente inspirado no Brasil, povoado por um povo alienado e sem
esperança e dominado por poderosos ricos e corruptos. Neste filme, talvez a maior
crítica social de Glauber Rocha em filme, ele não poupa ninguém: o clero, o
populismo, os políticos de direita, os esquerdistas revolucionários, os
jornais... todos saem feridos. ‘Terra em Transe’ traz ainda uma reflexão
(bastante pessoal) sobre o papel político do artista.
-Bonnie & Clyde (1967), de Arthur Penn:
este filme abriu as portas para a Nova Hollywood, aproveitando a maior abertura
para temas polêmicos por causa do fim do chamado Código de Produção para chocar
e maravilhar espectadores e críticos. A forma quase romântica com que os
foras-da-lei do título são tratados, a estilização da violência e o realismo
brutal chocaram o público, ainda acostumado com os melodramas de Hollywood.
-Se... (1968), de Lindsay Anderson: Se...
é provavelmente o mais emblemático filme de 1968, demonstrando o fervor
revolucionário da juventude como ninguém. Este filme chocou o público com cenas
de sexo explícito e anárquicos estudantes agindo como guerrilheiros e se
revoltando contra sua própria escola, atacando seu diretor e outras figuras de
opressão.
-2001: Uma Odisséia no Espaço (1968), de
Stanley Kubrick: impossível não falar de filmes de 1968 ou da década de
1960 e não falar de 2001, filme que
essa semana revigorou sua aclamação como um dos cinco melhores da história
através da respeitada votação feita pela revista Sight And Sound. Kubrick desafiou o intelecto até dos mais
respeitados críticos e cineastas, causando admiração e incredulidade com uma
obra-prima que quebraria várias barreiras relacionadas ao que se podia fazer em
um filme até se fosse lançada neste ano. Até as declarações de Kubrick a
respeito do filme na época, falando de como não falaria do significado da obra
porque acreditava que ela era uma “experiência não-verbal”, são lembradas até
hoje.
-Blow-Up (1966), de Michelangelo Antonioni:
com este filme (talvez seu mais conhecido até hoje), Antonioni fez o retrato da
alienação e inquietação de uma geração, através de situações estranhas em que a
realidade é questionada e quebra de barreiras (a nudez e sexualidade aberta do
filme foram bastante polêmicas na época). Também é digna de nota a cena em que
a banda inglesa de rock The Yardbirds toca uma música, sendo esta uma das
primeiras aproximações entre rock e “cinema de arte”.
-A Chinesa (1967), de Jean-Luc Godard: Godard
continuava a desafiar convenções narrativas e limitações relacionadas a gênero
em seus filmes, mas obras como essa e outras dos anos anteriores (65 e 66)
serviram de preparação para uma fase explicitamente política de Godard, em
contraste com os filmes mais “alienados” do início de sua carreira. A Chinesa mostra uma nova geração de
jovens burgueses determinados a aprender com e discutir as teorias socialistas
de Mao, Lênin e Marx, ainda que sem muito comprometimento. Essa geração
atingiria seu apogeu nos eventos de Maio de 68, dos quais Godard participou
forçando (junto com outros cineastas, com o Truffaut) o Festival de Cannes a
ser cancelado como forma de apoio aos estudantes e revoltosos em geral.
-Dr. Fantástico ou Como Aprendi A Parar de
Me Preocupar E Amar A Bomba (1964), de Stanley Kubrick: acostumado a causar
polêmica com seus filmes desde Lolita
em 62, Kubrick continuou essa tradição com Dr.
Fantástico, seu próximo filme. Ao perceber a situação bizarra que tinha em
mãos, Kubrick transformou o que era antes um filme sério baseado em um livro
sério numa sátira política de humor negro. Com essa comédia hilária, o diretor
evidenciou o apocalipse nuclear evidente, o caráter surreal da guerra e a
loucura dos que a administram.
-A Viagem (1967), de Roger Corman: A Viagem
não está citado aqui por sua qualidade (em vários momentos ele chega a parecer
bizarro, ainda que sem querer), mas por evidenciar a situação dos jovens
americanos da época. O roteiro (autobiográfico) escrito por Jack Nicholson
mostra um homem em busca da cura para suas desilusões amorosas através de
viagens psicodélicas de LSD. O filme foi feito por um hippie e protagonizado
por hippies (Dennis Hopper e Peter Fonda, que mais tarde estrelariam em Sem
Destino), o que por si só já é estranho, mas o fato de
ter sido feito mostra que seu público-alvo (os próprios hippies) já eram
presença significativa entre os jovens americanos naquele ano.
-O Bandido da Luz Vermelha (1968), de
Rogério Sganzerla: talvez este filme seja o maior exemplo de uma vertente
do Cinema Novo surgida no Brasil, chamada de Cinema Marginal. Em vez de
criticar a situação sociopolítica da sociedade através de ficções que mais
pareciam realidade e de um compromisso ético em relação ao público, se
distanciando do engajamento político. N’O
Bandido da Luz Vermelha, Sganzerla se aproveitou dos mais diversos gêneros
do cinema num processo antropofágico digno de Oswald de Andrade, satirizando a
tudo e a todos com humor, fantasia, violência e amoralidade.
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