segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Quando foi 68?: Cinema, Música e Política

por Mário Augusto Rolim


MÚSICA:

 O ano de 1968 é tido, por merecimento, como o ápice dos movimentos de contracultura que se espalharam por várias partes do mundo entre o final da década de 1960 e o começo da década de 1970. Um bom meio de evidenciar isso é lembrar o número de músicas pop que, se não defendiam a revolta, pelo menos demonstravam uma percepção de que alguma coisa diferente estava acontecendo naqueles anos finais da década. Mesmo bandas e artistas que eram – e continuaram depois – apolíticas escreveram pelo menos alguma música relacionada à situação sociopolítica daquele tempo. Sim, os anos de maior engajamento dos jovens em movimentos contraculturais ou de protesto coincidiram com os anos de maior tendência ao protesto na música pop, mas, mesmo nessa época, protestar explicitamente através de músicas não era comum. Na verdade, esse tipo de comportamento é comum nas artes comerciais em geral, desde a música até a literatura e o cinema. Tal tipo de músicas era mais comum em artistas relacionados ao movimento de revitalização da folk music americana e artistas como Joan Baez, Bob Dylan (entre os anos de 1963 e 1965), Pete Seeger e Peter, Paul And Mary.
Posso começar com o Cream, um supergrupo de rock que em suas letras seguia as tradições do blues com uma influência de rock psicodélico, e preferia fazer covers de clássicos do blues a abordar temas sociais em suas músicas. Mas em 68 eles escreveram e lançaram, no álbum Wheels of Fire, uma canção chamada ‘Politician’, descrita na crítica do álbum na Allmusic como “um blues lento, cínico”. A letra critica o lado hipócrita e falso dos políticos, com um eu-lírico que “apóia a esquerda apesar de estar se inclinando para a direita”, que “não está lá quando há uma briga”, se declarando “um homem político que pratica o que prega” e que chama uma pessoa desconhecida (provavelmente uma mulher) para dentro do seu “grande carro preto” para “mostrar suas políticas”.
A banda californiana The Doors seguia caminho parecido ao Cream em termos de letras e de propensão a fazer covers de clássicos do blues, mas em 68 eles largaram sua postura passiva por um momento e lançaram no álbum Waiting For The Sun a canção ‘The Unknown Soldier’. Nela, Jim Morrison – vocalista e principal compositor da banda – aborda o modo como a mídia tratava a Guerra do Vietnã escrevendo “Café da manhã onde as notícias são lidas/Televisão alimentou as crianças/Não-nascidos vivendo, mortos-vivos/Bala atinge a cabeça com o capacete”, e também escreve “Faça uma cova para o soldado desconhecido/Aninhado na tumba de seu ombro”, terminando a música com uma encenação do fim da guerra. Ao tocar essa canção, a banda também costumava simular de um pelotão de fuzilamento, através de uma combinação de sons da bateria e guitarra e Morrison caindo no palco, como que fuzilado pela guitarra.
Outra banda de rock que seguia uma vertente semelhante às duas anteriores na composição de suas músicas eram os Rolling Stones. Em 68, Mick Jagger compôs ‘Street Fighting Man’ para o álbum Beggars Banquet. A inspiração para escrevê-la após ir a uma manifestação anti-guerra em frente à embaixada americana em Londres naquele ano, na qual policiais investiram contra uma multidão de aproximadamente vinte e cinco mil jovens. Na letra, Jagger toma partido dos protestantes/”revolucionários” e retrata muito bem o ambiente daquele momento, dizendo que “Em todo o lugar eu escuto o som de pés marchando/Porque o verão chegou e a hora é certa para lutar nas ruas” e que “Acho que o momento é certo para uma revolução palaciana”, apesar de lamentar que “Mas o que um pobre garoto pode fazer/A não ser cantar em uma banda de rock ‘n roll/Porque na sonolenta cidade de Londres não há lugar para um lutador de rua”. Os Stones pretendiam lançá-la como single, com uma foto de policiais batendo em manifestantes de Los Angeles, mas a distribuidora rapidamente proibiu sua circulação. O single foi também banido em várias rádios americanas, que alegavam que ele era “subversivo” e podia “incitar violência”. Jagger respondeu dizendo que “É claro que é subversivo! É estúpido pensar que se pode começar uma revolução com um disco. Quem dera se pudesse!”.
Seguindo a linha de bandas de rock que tinham letras (e canções) influenciadas primariamente por blues e rock psicodélico, temos a Jimi Hendrix Experience. Para seu álbum de 1968, Electric Ladyland, Hendrix compôs ‘House Burning Down’ (segundo ele porque não entendia o porquê de irmãos – no sentido mais amplo do termo – queimarem as casas uns dos outros) uma referência aos protestos anti-racismo do verão de 68, em que várias casas e estabelecimentos foram incinerados. Também tem conotação sociopolítica a canção ‘1983... A Merman I Should Turn To Be’, apesar dela estar um pouco escondida por trás de metáforas e uma das letras mais poéticas de toda a carreira de Hendrix. Nela, o eu-lírico fala sobre querer renascer sob a forma de um sereio junto com seu amor, fugindo da guerra e seu “barulho mortal”. Ele também lamenta que “nossos amigos não podem estar conosco hoje”, numa referência aos assassinatos de Martin Luther King Jr. e Robert Kennedy, separados por apenas dois meses. Hendrix também faz alusão ao bombardeio – através de mísseis, bombas e napalm – ao Vietnã feito pelos Estados Unidos, com “Coisas gigantes com formato de lápis e batom/Continuam a chover e causar dor gritante”. O título é uma referência à seção 1983 – que fala de ação civil à deprivação de direitos - do Civil Rights Act de 1871, feito para proteger - legalmente - os negros de ataques racistas, o que extinguiu a Klu Klux Klan por décadas.
Pode-se terminar mencionando justamente os Beatles, a maior banda de rock da história, que em seu Álbum Branco de 1968 uma música chamada ‘Revolution 1’ e outra chamada ‘Revolution 9’. Os Beatles até então só tinham abordado temas sociopolíticos em suas músicas (a maior parte estava bem longe disso) em ‘Taxman’, uma crítica irônica aos impostos pagos pelos britânicos naquela época. ‘Revolution 1’ é uma canção sobre as revoluções (ou tentativas de revolução) que ocorreram no mundo no primeiro semestre de 1968, principalmente. Em vez de enaltecer tais revoluções – como poderia ter acontecido, já que os Beatles eram contra a Guerra do Vietnã e estavam entre os principais expoentes da cultura hippie na música -, a letra de John Lennon questiona o planejamento e a abordagem dos revolucionários, ao mesmo tempo em que mostra o caráter dúbio do seu compositor, que não sabe se quer se juntar aos revolucionários ou não. Essa ‘crítica da crítica à sociedade’ não era fácil de ser encontrada nos trabalhos artísticos de bandas anti-stablishment da época, já que os hippies como um todo pareciam imbuídos de um estado de crescente otimismo de 1967 a 1970. John Lennon chegou a ser criticado por radicais de esquerda, que alegaram que a canção era uma traição ou uma demonstração burguesa de medo, e até perseguido por grupos que seguiam ou eram favoráveis a Mao, Trotski e Lênin. Já ‘Revolution 9’ é completamente diferente da sua “companheira”, e também completamente diferente de qualquer outra música dos Beatles ou de qualquer banda de música pop da história, se constituindo de uma colagem vanguardista de sons e efeitos sonoros dos mais variados, pontuados por vocais que na maior parte das vezes são quase incompreensíveis, chegando a cerca de oito minutos. Inicialmente, ‘Revolution 1’ e ‘Revolution 9’ seriam uma música só de aproximadamente dez minutos, com a primeira dando lugar à segunda, mas Lennon decidiu separá-las e fazer uma seção de colagens mais elaborada (e complexa) do que originalmente previsto. A inclusão dela no álbum chocou não só o público, que anos atrás podiam ver os Beatles vestidos de jovens comportados tocando músicas até inocentes como ‘She Loves You’ e ‘I Wanna Hold Your Hand’, mas também os próprios membros da banda e profissionais que trabalhavam com ela (Paul McCartney era contra a inclusão dela, que acabou sendo a canção de estúdio de maior duração dos Beatles, no álbum; George Harrison ajudou na edição e contribuiu gravando algumas partes vocais). É praticamente impossível se tirar uma mensagem da “letra” de ‘Revolution 9’, mas não estaria John Lennon fazendo também uma excêntrica espécie de revolução com sua aventura pela música concreta? Muitos críticos chegaram a afirmar que a inclusão de ‘Revolution 9’ no Álbum Branco era o fator essencial que o tornava mais que um álbum de música pop. Um álbum-conceito, alguns diriam, outros falariam de um suposto gênero musical chamado ‘art rock’. Não importa. John Lennon pode não ter tido sucesso em sua revolução pessoal, mas ninguém pode falar que ele não chocou o mundo, ou que ele não deixou uma mensagem.
Essas duas canções são um bom exemplo para diferençar os variados tipos de ações políticas de protesto ou de demonstrações de consciência política que eram/são feitas através da arte, mais precisamente a música, naquele momento da história. De um lado, as músicas de crítica social explícita, ainda que essa crítica venha em forma de metáfora ou outras figuras de linguagem. Como exemplo eu posso citar ‘Blowin’ In The Wind’ e ‘The Times They Are A-Changin’’, de Bob Dylan, ou ‘Pra Dizer Que Não Falei das Flores’, de Geraldo Vandré. Em outra vertente eu colocaria os trabalhos musicais que procuravam não fazer uma crítica sociopolítica explícita através das letras, mas que acabavam por ter um impacto mesmo assim. Claro, sempre houveram e haverão artistas que parecem ser até despretensiosos socialmente e preferem se manter longe de qualquer discurso político, mas que conseguem chocar mesmo assim. Esses sempre estiveram conscientes do seu papel no meio artístico e da sua capacidade de crítica ao meio cultural e social em que habitam, como Caetano Veloso, The Velvet Underground e Miles Davis.
Não vou longe o suficiente para dizer que todo ato artístico é em si também um ato político, mas não se podem negar certas coisas. A mera existência de uma banda como o Velvet Underground, por exemplo, com seu som muitas vezes estranho e distorcido e suas letras falando sobre consumo de drogas e perversão de diferentes tipos já é em si uma grande afronta ao sistema político. Quanto à importância desses diferentes tipos de discursos políticos, Caetano Veloso menciona em sua autobiografia ‘Verdade Tropical’ que Geraldo Vandré chegou a procurar o empresário de Caetano e Gil para pedir a eles que não entrassem no páreo (nas disputas por festivais ou mesmo por espaço nas rádios e na mídia), alegando que “o Brasil necessitava daquilo que ele, Vandré, estava fazendo (ou seja: canções “conscientizadoras das massas”) e que, como o mercado não comportava mais de um nome forte de cada vez, nós todos deveríamos, para o bem do país e do povo, jogar todas as cartas nele”. Vandré já era o cantor de protesto por excelência no país e além de auto-confiança e desejo de “conscientizar as massas”, também está por trás desse pedido uma noção de que o tipo de música que ele fazia era mais importante para o país do que a Tropicália. Também havia em Vandré uma cobrança para que Caetano, Gil e tantos outros tornassem sua crítica política mais veemente. É impossível determinar qual dessas duas vertentes efetivamente causa mais impacto, mas o fato é que a Tropicália, com sua desenvoltura, maneira performática e até escandalosa de se apresentar e mistura de diferentes gêneros musicais com a própria poesia, até, chocou tanto adeptos da bossa nova quanto do rock (a principal dicotomia musical da época). A prova de que a Tropicália também era uma ameaça à ditadura veio quando Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos após uma apresentação na TV em tempos de Natal na qual Caetano cantava ‘Noite Feliz’ apontando uma arma para a própria cabeça (Caetano quase pediu para ser preso, convenhamos). Na prisão, oficiais chegaram a dizer a Caetano que achavam a música que eles estavam fazendo bem mais ultrajante e perigosa (não nessas palavras) que músicas de protesto mais claras. Depois de algum tempo, a cabeça de Caetano foi raspada na prisão. Nesses tempos, até ter cabelo grande podia ser um ato político.



CINEMA:

            Entre as formas de arte (ou de pensamento e expressão) que entraram em ebulição nos anos 60, mais precisamente no final da década, mais precisamente ainda em 1968, o cinema foi certamente uma das mais afetadas pelo espírito da época e uma das que melhor souberam transmiti-lo. Mas não poderia ser diferente. Provavelmente é unânime que o cinema é a arte do século XX, e aquela que mais se firmou como uma das mais populares e amadas do mundo e a que mais povoou imaginário popular.
            Num cenário em que até estudantes que haviam cogitado coisa parecida se mobilizaram para enfrentar forças armadas do governo, e bandas que nunca haviam sequer mencionado assuntos políticos em suas músicas demonstraram atenção ou interesse ao cenário sociopolítico da época, provavelmente o cinema não teve um impacto tão grande nas questões políticas do fim da década de 60. Talvez tenha sido assim pela demora na produção e distribuição de um filme ser bem maior que de um disco, por exemplo, pela maior facilidade em censurar ou proibir a circulação de filmes, ou talvez pela própria tradição do cinema de não dar tanta importância aos problemas sociopolíticos de sua época. Mas analisar os filmes dos anos 60 assim é ver só um dos lados da moeda. Isso porque o cinema tem uma política própria, na qual as críticas (ainda que não estejam explícitas) estão mais voltadas para o mercado e o modo como o cinema é tratado do que com o cenário social. No caso, a “politique des auteurs” (política dos autores), termo usado pela primeira vez por François Truffaut em 1954.
            Essa política é um desenvolvimento de um ensaio escrito por Alexandre Astruc em 1948, chamado ‘Nascimento de uma nova vanguarda: a câmera-caneta’, no qual ele previa que o diretor/autor escreverá como um escritor escreve com sua caneta. A teoria foi retomada na Cahiers Du Cinéma por críticos (e futuramente cineastas) como André Bazin, Jean-Luc Godard, François Truffaut e Eric Rohmer. Na Cahiers havia uma defesa dessa nova forma de se analisar filmes na qual se via o diretor como autor máximo da obra, o estabelecimento do cinema como uma verdadeira e respeitável forma de arte através do desenvolvimento de uma estética própria, dando mais bem mais importância e destaque aos diretores vistos como autores, como Bresson, Renoir, Hitchcock, Welles, Kurosawa, Bergman, só para citar alguns. Ao tomar o partido de filmes mais pessoais e artísticos, essa política também rejeitava os filmes comerciais, pensados para fazer os estúdios lucrarem enquanto agradavam o grande público. A política foi adaptada para o inglês como “auteur theory” por Andrew Sarris, um dos mais importantes críticos de cinema dos Estados Unidos, em 62. Obviamente, essa política recebeu várias críticas, até mesmo de críticos respeitados como a americana Pauline Kael, mas é inegável que esse novo modo de analisar filmes influenciou profundamente tanto críticos e espectadores como diretores, e ainda é importante para a história do cinema e assunto de calorosos debates sobre a sétima arte.
            O sucesso da política dos autores foi efetivado e deu frutos com o sucesso da chamada Nouvelle Vague, vanguarda do cinema francês formada em grande parte por críticos da Cahiers Du Cinéma como Truffaut, Godard, Rohmer, Chabrol e Rivette, tendo se iniciado no fim da década de 50 e atingindo seu potencial máximo na década de 60. Os filmes da Nouvelle Vague eram de baixo orçamento e principalmente por causa disso tinham deficiências técnicas evidentes, mas eram autorais e dotados de uma aura de juventude como nenhum filme de Hollywood, e constantemente desafiavam os clichês de gêneros e os moldes seguros dos filmes comerciais, em questões que iam desde estruturas narrativas até o emprego de atores não-profissionais em papéis importantes. As influências fílmicas que formaram a estética dos diretores da Nouvelle Vague eram várias, indo desde os filmes noir americanos até neorrealistas italianos e de diretores-autores do cinema francês como Jean Renoir.
            Menciono a Nouvelle Vague primeiro porque foi ela que, sem dúvida, mais influenciou e impulsionou a criação das vanguardas do cinema que surgiriam na década de 60. Ecos da Nouvelle Vague foram ouvidos em várias partes do globo. Nos Estados Unidos, filmes como Bonnie & Clyde (1967) e Sem Destino (1969) evidenciavam o nascimento da chamada Nova Hollywood, dotada de jovens diretores como Scorsese, Coppola, de Palma, Friedkin, Peckinpah, Bogdanovich, Malick, Spielberg, Altman e Ashby, entre outros. Esses cineastas lutavam contra a ideologia repressora, antiquada, e voltada para o mercado dos grandes (e decadentes) estúdios enquanto tentavam dominar o sistema de estúdios e assim conquistar mais autonomia e melhor financiamento, produção e distribuição de seus filmes, muito mais ousados e pessoais que os da Hollywood clássica.
Na antiga Tchecoslováquia, pouco tempo antes dela se tornar um caldeirão com a Primavera de Praga, cineastas como Milos Forman, Jan Nemec, Jíri Menzel, Ján Kadár e Vera Chytilová faziam filmes que desafiavam e criticavam os valores e as condições sociopolíticas de sua sociedade, ainda que não explicitamente. Muitos deles foram atacados ou proibidos pela censura governamental, e Forman e Nemec tiveram que deixar o país.
            Enfrentando situação semelhante (vivendo sob um regime autoritário e desigual que costumava censurar filmes e outras formas de arte) estavam os cineastas do Cinema Novo no Brasil, como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Joaquim Pereira de Andrade, sendo parte fundamental do que foi chamado de Terceiro Cinema, ou seja, um cinema do Terceiro Mundo. Ângela Prysthon abordou esse cinema no artigo ‘1968: Imagens de Uma Utopia’, dizendo:

“De acordo com a idéia de transformação da sociedade pela conscientização trazida à tona pelos ideais terceiro-mundistas, os principais temas dos filmes do terceiro cinema vão ser a pobreza, a opressão social, a violência urbana das metrópoles inchadas e miseráveis, a recuperação da história dos povos colonizados e oprimidos e a constituição das nações. Os praticantes do terceiro cinema recusam adotar um modelo único de estratégias formais ou transformar-se em um “estilo”, embora isto não tenha significado que eles estivessem alheios ao cinema mundial e à idéia de um modelo, se aberto, ao menos em linhas gerais unificador.
Ou seja, além de buscar os temas nas esferas marginalizadas da sociedade, estes cineastas demonstram laços estilísticos estreitos com o neo-realismo italiano e a Nouvelle Vague francesa. Tais influências vão ser sentidas em dois níveis principais: o neo-realismo italiano serve como proposta similar de abordagem formal que pode ser aproveitada por sua simplicidade, baixo custo e linguagem direta; e a Nouvelle Vague enquanto afirmação do “cinema de autor”, o que possibilita a consolidação das linguagens individuais dos principais expoentes do movimento. A partir desses elementos, emerge um conjunto de procedimentos mais ou menos comuns à maioria dos diretores engajados na denúncia social.” (PRYSTHON, p. 16)

            Certamente os diretores do Cinema Novo eram, entre os de todas as vanguardas citadas, os mais engajados socialmente, e o que mais chegaram perto de um fazer político convencional. Também é digna de nota a chamada ‘Estética da Fome’ que permeava os filmes dessa vanguarda, talvez o maior ponto de influência do neorrealismo italiano. Os filmes do Cinema Novo, além de mostrar pessoas pobres, eram evidentemente “pobres” também, sob vários aspectos. As imagens eram duras e até sujas, sem o polimento visual e o glamour que aparece até na direção de fotografia dos filmes de Hollywood; o som geralmente não era captado diretamente, o que era mais barato, e as trilhas sonoras não tinham pompa ou requinte, geralmente sendo constituídas de músicas típicas da região mostrada, ou de compositores brasileiros como Villa-Lobos; até a montagem não parecia tão clara, organizada e imperceptível como na estética hollywoodiana. Todos esses fatores podem ser vistos como defeitos, mas o Cinema Novo parecia ostentá-los com orgulho, até, e como uma maneira própria de demonstrar autonomia.
            Uma parte considerável desses cineastas, por uma variedade de motivos, não alcançou o sucesso almejado e teve apenas uns poucos e bons anos, com pouquíssimos nomes se mantendo em bom nível e chegando a fazer filmes de qualidade por décadas, como Malick, Scorsese, Forman, Rohmer, Truffaut, Godard, Altman e Spielberg. Numa década tão turbulenta, é até normal que tenham havido algumas “baixas”. Mas o fato é que os cineastas dos anos 60, cada um à sua maneira, faziam política filmando desde as condições precárias dos trabalhadores do sertão nordestino até as viagens (tanto as “psicodélicas” quantos as por estradas) de motoqueiros hippies. E o cinema nunca mais foi o mesmo depois disso.


            É impossível falar do cinema dos anos 60 sem ao menos esboçar uma análise mais geral do contexto, separando tudo por grupos distintos, mas também é impossível fazê-lo sem destacar alguns filmes em particular, ainda que brevemente:

- Antes da Revolução (1964), de Bernardo Bertolucci: ao contrário do que o título possa sugerir, essa obra de Bertolucci (então com 22 anos) demonstra como poucas a frustração da juventude em relação à sua própria incapacidade de alcançar seus sonhos – tanto relacionados ao amor impossível quanto a revoluções socialistas -, por causa das amarras da ideologia burguesa. A mesma geração que abraçaria e tentaria uma revolução alguns anos depois.
- Terra em transe (1967), de Glauber Rocha: o filme de Glauber Rocha se passa em um país latino-americano fictício chamado El Dorado, claramente inspirado no Brasil, povoado por um povo alienado e sem esperança e dominado por poderosos ricos e corruptos. Neste filme, talvez a maior crítica social de Glauber Rocha em filme, ele não poupa ninguém: o clero, o populismo, os políticos de direita, os esquerdistas revolucionários, os jornais... todos saem feridos. ‘Terra em Transe’ traz ainda uma reflexão (bastante pessoal) sobre o papel político do artista.
-Bonnie & Clyde (1967), de Arthur Penn: este filme abriu as portas para a Nova Hollywood, aproveitando a maior abertura para temas polêmicos por causa do fim do chamado Código de Produção para chocar e maravilhar espectadores e críticos. A forma quase romântica com que os foras-da-lei do título são tratados, a estilização da violência e o realismo brutal chocaram o público, ainda acostumado com os melodramas de Hollywood.
-Se... (1968), de Lindsay Anderson: Se... é provavelmente o mais emblemático filme de 1968, demonstrando o fervor revolucionário da juventude como ninguém. Este filme chocou o público com cenas de sexo explícito e anárquicos estudantes agindo como guerrilheiros e se revoltando contra sua própria escola, atacando seu diretor e outras figuras de opressão.
-2001: Uma Odisséia no Espaço (1968), de Stanley Kubrick: impossível não falar de filmes de 1968 ou da década de 1960 e não falar de 2001, filme que essa semana revigorou sua aclamação como um dos cinco melhores da história através da respeitada votação feita pela revista Sight And Sound. Kubrick desafiou o intelecto até dos mais respeitados críticos e cineastas, causando admiração e incredulidade com uma obra-prima que quebraria várias barreiras relacionadas ao que se podia fazer em um filme até se fosse lançada neste ano. Até as declarações de Kubrick a respeito do filme na época, falando de como não falaria do significado da obra porque acreditava que ela era uma “experiência não-verbal”, são lembradas até hoje.
-Blow-Up (1966), de Michelangelo Antonioni: com este filme (talvez seu mais conhecido até hoje), Antonioni fez o retrato da alienação e inquietação de uma geração, através de situações estranhas em que a realidade é questionada e quebra de barreiras (a nudez e sexualidade aberta do filme foram bastante polêmicas na época). Também é digna de nota a cena em que a banda inglesa de rock The Yardbirds toca uma música, sendo esta uma das primeiras aproximações entre rock e “cinema de arte”.
-A Chinesa (1967), de Jean-Luc Godard: Godard continuava a desafiar convenções narrativas e limitações relacionadas a gênero em seus filmes, mas obras como essa e outras dos anos anteriores (65 e 66) serviram de preparação para uma fase explicitamente política de Godard, em contraste com os filmes mais “alienados” do início de sua carreira. A Chinesa mostra uma nova geração de jovens burgueses determinados a aprender com e discutir as teorias socialistas de Mao, Lênin e Marx, ainda que sem muito comprometimento. Essa geração atingiria seu apogeu nos eventos de Maio de 68, dos quais Godard participou forçando (junto com outros cineastas, com o Truffaut) o Festival de Cannes a ser cancelado como forma de apoio aos estudantes e revoltosos em geral.
-Dr. Fantástico ou Como Aprendi A Parar de Me Preocupar E Amar A Bomba (1964), de Stanley Kubrick: acostumado a causar polêmica com seus filmes desde Lolita em 62, Kubrick continuou essa tradição com Dr. Fantástico, seu próximo filme. Ao perceber a situação bizarra que tinha em mãos, Kubrick transformou o que era antes um filme sério baseado em um livro sério numa sátira política de humor negro. Com essa comédia hilária, o diretor evidenciou o apocalipse nuclear evidente, o caráter surreal da guerra e a loucura dos que a administram.
-A Viagem (1967), de Roger Corman: A Viagem não está citado aqui por sua qualidade (em vários momentos ele chega a parecer bizarro, ainda que sem querer), mas por evidenciar a situação dos jovens americanos da época. O roteiro (autobiográfico) escrito por Jack Nicholson mostra um homem em busca da cura para suas desilusões amorosas através de viagens psicodélicas de LSD. O filme foi feito por um hippie e protagonizado por hippies (Dennis Hopper e Peter Fonda, que mais tarde estrelariam em Sem Destino), o que por si só já é estranho, mas o fato de ter sido feito mostra que seu público-alvo (os próprios hippies) já eram presença significativa entre os jovens americanos naquele ano.
-O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla: talvez este filme seja o maior exemplo de uma vertente do Cinema Novo surgida no Brasil, chamada de Cinema Marginal. Em vez de criticar a situação sociopolítica da sociedade através de ficções que mais pareciam realidade e de um compromisso ético em relação ao público, se distanciando do engajamento político. N’O Bandido da Luz Vermelha, Sganzerla se aproveitou dos mais diversos gêneros do cinema num processo antropofágico digno de Oswald de Andrade, satirizando a tudo e a todos com humor, fantasia, violência e amoralidade.

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