domingo, 5 de agosto de 2012

Sobre Música e Identidade


Resenha do trecho "Música e Identidade", do artigo "A reinvenção musical do Nordeste", de Felipe da Costa Trotta.
(Por Michael Matos)

Para o autor, a Música, enquanto forma cultural que acontece no tempo, mantém uma relação direta com a própria vida - que também ocorre inserida no tempo. Os padrões rítmicos e melódicos da natureza, como o nascer e o pôr do sol, a mudança das estações, e a própria reverberação dos tempos e ritmos biológicos, como nascer/viver/morrer, e mesmo as batidas do coração, são reproduzidos, em escala reduzida, nas articulações sonoras que formam a música. Desta forma, a música manifesta profundos desdobramentos simbólicos de organização temporal da própria sociedade.
              Em lidando com o tempo, a música articula, ainda, de modo bastante próprio e profundo nossa relação social com o passado. Isso porque, na música, sempre estamos falando do passado, do que já se tocou e do que já foi ouvido. Nesse contexto, o presente se torna algo pouco palpável, uma nota costurada a um longo diálogo feito de elementos sonoros de antes. Ainda em relação ao passado, é possível identificar constantemente na música a recorrência de padrões sonoros (ritmos, melodias, acordes, arranjos, estilos, etc) em práticas atuais, numa tentativa de articular hereditariedade entre o antigo e o novo, concedendo legitimidade para as novas práticas. Passado e presente são continuamente reprocessados na música, na própria maneira de compor e tocar e na consolidação de referências e identidades.
"Esta incorporação de elementos musicais e fragmentos de um universo musical previamente experimentado na escuta do presente fornece um modelo de experiência musical que nos remete continuamente para outros momentos de compartilhamento sonoro, com influência direta na reconstrução dos sentidos musicais atribuídos a cada audição. Exemplos bastante evidentes deste processo podem ser ouvidos na utilização sistemática de certos instrumentos em algumas práticas musicais. No samba e no choro, por exemplo, a presença de pandeiro e do cavaquinho torna-se quase obrigatória, capaz de caracterizar o som dos gêneros e, ao mesmo tempo, de associar essa sonoridade a um conjunto de referências históricas próprias inscritas em seu repertório referencial, estabelecendo, assim, sua herança e continuidade". (TROTTA, 2012, pág. 12).

              Trotta também comenta a associação da música a espaços sociais, pois, sendo a música visceralmente ligada a eventos, rituais e encontros, ela serviria de registro sonoro e cultural dessas manifestações culturais. Para ele, a música também promoveria a fundição do individual ao coletivo e ajudaria a moldar ambiências afetivas compartilhadas socialmente.
"Mas além de estabelecer uma ambientação afetiva ou de construir uma hereditariedade temporal, a música é uma atividade humana que se caracteriza fortemente por agregar pensamentos e valores em sua experiência. Trata-se aqui não de uma arte reflexiva (se é que se pode identificar alguma que o seja), mas de incorporar aa noção de que a própria música é uma forma de pensamento social, ou seja, através da prática musical coletiva os que dela participam reprocessam visões de mundo e códigos culturais, reafirmando identificações, rechaçando modelos que parecem não mais corresponder à temporalidade atual e construindo relações temporais (entre presente, passado e futuro) e afetivas (entre indivíduos e grupos sociais)." (pág. 13)

              Sobre a apropriação de símbolos na construção da identidade, Trotta diz que esse é processo extremamente plástico, que varia de acordo com o ambiente e o momento. Por exemplo, ele diz que um roqueiro só pode ser assim considerado por se apropriar constantemente de símbolos ligados ao rock (consumir rock constantemente, ir a shows, adotar vícios de linguagem, entre outros). A partir do momento que surgem novas variantes no(s) ambiente(s), essa apropriação pode se tornar mais volúvel e plástica.
              Entretanto, o processo de contínua reafirmação dos elementos identitários ligados à produção e ao consumo de música encontra em alguns gêneros musicais pontos de apoio razoavelmente estáveis. "Estes são formados por certas canções e autores que atingiram determinado grau de consagração dentro do gênero e que se tornaram referencias para a construção de identidades e representações musicais." (pág. 14). Segundo Trotta, tais músicas e autores podem responder pelo gênero, ou mesmo serem confundidos com o próprio "padrão" dos genêros.
              Trotta faz, ainda, uma associação a espaços geográfico, no processo de identificação musical, de forma que tempo espaço, na música, são como portas de entrada para o compartilhamento de identidades e processamentos e invenções de sentimento de pertencimento e coletividades. Por exemplo, é comum associarmos o samba ao Rio de Janeiro e, o tango a Buenos Aires e o frevo a Recife e Olinda. Nesse caso, a música é tão enraizada nessas cidades que é aceitável representá-las por meio desses ritmos, apesar de toda a controvérsia que pode surgir disso e da simplificação da região que é necessária para tal.
              Por fim, o autor fala da construção de uma identidade musical regional e de como seria difícil (se é que possível) representar uma região rica e multicultural como o Nordeste brasileiro com um único ritmo ou estilo. Para tal, seria necessário ignorar toda a complexidade dos indivíduos e da própria região, além de que, dificilmente se encontraria um ritmo no qual todos ou grande parte se sentiriam representados.

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